domingo, 8 de agosto de 2010

BI, carta de condução ou diploma? Aguarda, 15 minutos..."

BI, carta de condução ou diploma? Aguarda, 15 minutos..."

http://www.opais.net/resources/images/2009pais/edicao_68/pais68_lr_5.jpgLimites? Praticamente nenhuns. Quem quiser transformar-se da noite para o dia em licenciado, precisar de apagar todo o cadastro de crimes ou passar por um cidadão com os seus compromissos militares resolvidos, tem uma mão cheia de soluções. Só tem que dispor de dinheiro e descaramento quanto baste. Uma verdadeira indústria de falsificação funciona a todo o gás em Luanda.

Para saber como tais grupos mafiosos operam, O PAÍS percorreu, por algumas horas, um dos maiores e mais conhecidos centros de falsificação de documentos da capital: o chamado “Pau Grande”, sito no município do Cazenga.

Oito horas da manhã. Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 2010. A equipa de reportagem d´O PAÍS chega ao município mais populoso de Angola, o Cazenga, mais propriamente no local onde foi erguido o Marco Histórico dos Heróis de 4 de Fevereiro. Ao contrário do que habitualmente acontece neste mês, não estamos ali para homenagear os gloriosos guerrilheiros, mas sim para conhecer de perto o local onde terá começado a maior burla bancária de todos os tempos no país. Defronte ao marco histórico, dezenas de jovens encontram-se reunidos numa amena cavaqueira.

Outros tantos estão já a consumir as primeiras cervejas do dia numa barraca feita com paredes de esteiras. O que parece ser um convívio normal e inocente é, na verdade, um posto ilegal e criminoso de trabalho.

Mal nos aproximamos à barraca onde se vendem as “birras”, alguns jovens com mochilas às costas perguntam-nos, na maior displicência, se queremos tratar documentos.

Pelo que, inicialmente, respondemos com um firme “não”. Alguns metros depois, notamos que é no pormenor que tudo faz sentido. Os mais cautelosos piscam o olho a toda gente que por ali passa ou então fazem gestos com as mãos indicando que ali se comercializa todo o tipo de documentos. Disfarçados de clientes de primeira viagem, acenamos positivamente aos mais discretos, como sinal de que queremos fazer negócio. Num ápice, estamos rodeados de oito jovens que apresentam e vendem os seus serviços.

“Temos todo o tipo de documento.

http://www.opais.net/resources/images/2009pais/edicao_68/pais68_lr_20.jpgO que é que o kota quer?”, questionam-nos, para depois anunciarem que vendem cartas de condução, passaportes de disponibilidade, todo o tipo de documentos militares e policiais, certificados de habilitações literárias, registos criminais, atestados médicos e de residência, bilhetes de identidade, cédulas, alvarás, entre outros.

Receoso, o falso cliente, ou seja eu, mostro-me assustado com tamanha ousadia em pleno espaço público e digo que prefiro negociar no local onde são feitos os documentos. Num à-vontade, os jovens garantem que não há qualquer problema em fazer negócio na rua, no entanto, encaminham-me para um estúdio de fotografia defronte ao supermercado Zamba I. Para meu espanto, dentro da “Fuji Film” estão duas cidadãs chinesas, funcionárias do estúdio, que acompanham a negociação sem sequer mugir nem tugir. “Kota, diz o que queres?”, insiste o jovem de estatura média, trajado de calção, camisola e tênis branco da moda.

“Bem. Preciso de um documento para entregar numa empresa petrolífera. Quero ser um chefe administrativo.

Preciso de um certificado da Faculdade de Direito do último ano, registo criminal e um documento militar”, explico-me.

Não há makas. São 12 mil Kwanzas, mas este preço pode ser discutido”, alertou, depois de me ver franzir o nariz.

Na verdade, o certificado de habilitações varia entre 10 e 12 mil Kwanzas; o registo criminal custa 2 mil e o passaporte de disponibilidade 5.500Kwanzas. Entretanto, como anuncio que vou querer mais outros documentos, o preço inicial reduz substancialmente para metade, isto é, seis mil Kwanzas para os três documentos.

Segundo os meus interlocutores, os preços dos certificados variam consoante o ano acadêmico e a Universidade. Ou seja, os canudos da Universidade Agostinho Neto (UAN) são mais caros em relação às universidades privadas, sendo que o valor dos diplomas das faculdades de Direito e Medicina são mais elevados. O mesmo acontece com as cartas de condução. As da SADC custam 16 mil Kwanzas, enquanto que as tradicionais de cor rosada, também conhecidas como “cartão de pão”, são comercializadas ao preço único de seis mil Kwanzas.

Os atestados médicos e de residência são vendidos ao preço de 1.500 Kwanzas.

A negociação entre o falso cliente (no caso o jornalista) e o falsário dura menos de vinte minutos, tempo suficiente para eu anotar num papel os meus dados pessoais, na verdade deturpados.

De acordo com os jovens mafiosos, a feitura do documento dura apenas dez minutos, devendo o interessado aguardar por ele numa barraca nas imediações. Caso não queira ficar naquele ambiente criminoso, o cliente pode ainda ir dar uma volta nos arredores do bairro. Feliz ou infelizmente a acção criminosa durou mais tempo do que o anunciado. Cerca de 30 minutos para a entrega do registo criminal.

http://www.opais.net/resources/images/2009pais/edicao_68/pais68_lr_21.jpg“Na fonte está muito cheio. O kota que bumba o mambo tem mais de 50 papéis na mesa”, justifica-se, no seu português de “business man”, sem que para tal aceite levar-nos ao local exacto da máfia.

“Nós apenas recebemos o documento e levamos ao kota da banda.

Não estamos autorizados a levar lá os clientes, porque pode ser DNIC”, atira cauteloso.

Segundo o nosso interlocutor, que não se identifica, as acções são praticadas por mais de cem jovens que se encontram distribuídos na estrada que liga o Tanque do Cazenga e o Imbodeiro do mesmo bairro.

A ousadia do farsante é tanta que, enquanto esperamos pelo documento, um jovem membro da gangue criminoso dá-se ao luxo de, diante de todos, imitar com alguma perfeição (pelo menos aos nossos olhos e dos mais leigos) a assinatura dos directores provinciais da Viação e Trânsito que assinam as cartas de condução.

“A assinatura do director de Cabinda é assim. A de Luanda é assim”, exemplifica numa das folhas do seu fiel caderno onde transporta os documentos falsos já emitidos. Vaidoso, porque está próximo da perfeição, o jovem anuncia aos comparsas que nos próximos tempos vai deixar de ser intermediário para passar a tratar, ele mesmo, os documentos falsos.

“Já tenho uma máquina de dactilografar. Falta apenas um computador para ´bumbar´ as cartas de condução da SADC e outros ´ducús’ militares que dão mais dinheiro”, diz perante a cumplicidade das meninas de olhos rasgados e a estupefacção do repórter-cliente.

O relógio já marcava 14 horas quando o jovem nos trouxe o documento militar. Mas outro farsante diz que o traímos porque somos clientes dele. Aliás, prossegue, “o ´muadié´ tem cara de um dos meus familiares”. Pura astúcia. Argumento infeliz rapidamente entendido pelo concorrente que o afasta. Como é dia de jogo Petro-ASA, os jovens retiram-se mais cedo do campo de “trabalho” porque têm de ir assistir ao derby luandense.

Curiosamente, a nossa reportagem constatou que o crime realiza-se a poucos metros de duas unidades policiais, sendo que tudo é feito às claras. Os falsificadores, com idades compreendidas entre os 16 e 50 anos, espalhados por toda avenida, em pequenos grupos, são muito populares entre os moradores e comerciantes que praticam nos arredores negócios decentes.

Nem tudo é falso

Entretanto, de acordo com dados obtidos no local, nem todos os documentos feitos no “Pau Grande” são totalmente falsos.

O PAÍS soube que os animadores deste obscuro negócio funcionam, em alguns casos, com os funcionários públicos das mais variadas repartições do Estado. Por exemplo, deu para verificar como uma falsa carta de condução da SADC não tinha ainda sido plastificada porque os farsantes aguardavam pelo selo original, redondo e prateado, que dá maior credibilidade ao documento. “O selo é original. Vem mesmo da fonte”, garante. Por outro lado, caso o solicitante queira de facto uma carta de condução original proveniente dos Serviços de Viação e Trânsito, isso também se transaciona. É tudo uma questão de preço, que no caso varia entre mil a 1.400 dólares. Paga-se e não é preciso fazer o exame de condução! Ali ainda é possível adquirir-se passaportes, declaração escolar, guias médicas, cédulas marítimas, entre muitos outros papéis oficiais necessários para os mais diversos fins burocráticos.

Segundo apurou O PAÍS, a Polícia tem realizado algumas acções de busca e captura dos farsantes, sendo que, em muitos casos, são apreendidos carimbos, papéis já timbrados de instituições públicas e privadas.

Um farsante confidenciounos, orgulhoso, que em todas as faculdades tem pelo menos um estudante que ingressou com o seu certificado. “Tenho a minha marca em todas as faculdades”.

Não obstante, os falsificadores do Pau Grande garantem que a fraude milionária do BNA não começou no ´SIAC´ do Cazenga, como também é conhecido o lugar, numa alusão ao oficial Serviço Integrado de Atendimento ao Cliente, que funciona nas novas urbanizações de Talatona, em Luanda.

“Isso é coisa de peixe muito grande. São outras redes de filhinhos de papais que estudaram nas faculdades do exterior que falsificaram os documentos”, diz outro jovem, que falsifica documentos há mais de 15 anos.

Para ele, se alguém do grupo tivesse participado da fraude bancária, já não estaria no bairro e toda a gente se aperceberia.

Enquanto esta reportagem foi feita, pelo menos seis cidadãos foram vistos a solicitar o serviço dos farsantes, uns por motivos acadêmicos e outros de emprego.

Convém sublinhar que a falsificação de documentos não é prática delitiva exclusiva do município do Cazenga. Ela ramificou-se um pouco por toda a cidade capital. “As pessoas falam mais do Pau Grande porque aqui o documento é feito com perfeição”, argumenta um jovem.

Bilhetes de Identidade, cartas de condução, cédulas de naascimento, registos criminais e atestados médicos e de residência, estão entre os documentos mais solicitados.


Nota da Redacção: os documentos adquiridos pelos jornalistas para dar suporte ao presente trabalho de reportagem vão ser destruídos ou, caso as instituições públicas mencionadas os pretendam obter para efeitos de comparação e peritagem, estão obviamente disponíveis.



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