quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Príncipe e o paradigma da autoridade no país

O Príncipe e o paradigma da autoridade no país
Por Nelson Pestana (Bonavena)*

O grupo central carismático aparece também como um instrumento do chefe para reforçar o seu poder; utilizando a inveja e acicatando as rivalidades, no seu seio, o chefe aparece como sendo o único capaz de fazer a síntese entre os interesses e as rivalidades presentes. Por outro lado, o chefe dirige o grupo central carismático manipulando o desejo e a ambição de todos de fazer parte da elite, jogando com as suas rivalidades também ao nível das várias mediações corporativas e da base popular com a qual desenvolve uma relação mística e demagógica. Não é por acaso que já vimos alguns deles julgarem-se delfins, terem, aparentemente, muito poder e, no dia seguinte, não serem mais nada, passíveis de serem enxovalhados por outros. ”.
- Por Nelson Pestana (Bonavena)*

O processo constituinte actual entrou, agora, na sua fase mais propagandística, em que os órgãos de comunicação social do Estado e todos os aparelhos de propaganda do Príncipe (subordinados à polícia e à central ideológica do regime) se esforçam em drenar os efeitos da oposição levada a cabo contra as suas pretensões autoritárias e dinásticas, dando a impressão de que a escolha dos angolanos já está feita e que esta recaia na matriz C que é aquela, segundo essa propaganda, que “garante a estabilidade do país” e o seu desenvolvimento harmonioso.

Quando isto se concretizar, não estaremos diante de uma revisão (profunda) da Constituição ou, dito de outra maneira, não estaremos perante a adopção da “Constituição de Angola”, no quadro do “Estado Democrático de Direito”, (que era o que a grande maioria dos cidadãos desejavam) mas diante da subversão da ordem democrática de direito e republicana, face ao abandono do paradigma de autoridade consagrado na actual Constituição que é baseado na razão e na lei. Teremos também um deslocamento do centro de gravidade da soberania nacional.

Pois, partir da ideia de que José Eduardo dos Santos (e só ele) significa a garantia de uma estabilidade extraordinária para Angola, não pode senão significar o abandono dos postulados políticos democráticos e republicanos e aceitar a ideia de que o país, para ser estável (mesmo que não seja previsível) precisa de um poder dinástico autoritário, quiçá, de inspiração divina, a julgar pela atitude e propostas ao “debate constituinte” de algumas igrejas, mormente aquelas que foram convertidas ao culto do envelope.

Quando isto acontecer, estaremos em presença não de uma autoridade política assente no consentimento racional dos cidadãos e que exerce o poder limitada pela lei – entendida como o contrato social e a expressão da vontade geral.

A “nova” autoridade, delineada segundo a matriz C, encontrará a sua “legitimidade” na crença, segundo a qual o nosso destino colectivo está indissoluvelmente ligado às inatas qualidades excepcionais do Príncipe.

Estaremos perante um regime que consagra, por caminhos ínvios, a autoridade carismática como forma de governo. A autoridade carismática, segundo a tipologia estabelecida por Max Weber, contrapõe-se à autoridade tradicional e à autoridade racional (legal, burocrática ou moderna) e baseia-se na força simbólica do chefe. Este impõe a sua autoridade pessoal como uma espécie de obrigação moral que se fundamenta na submissão do grupo, da comunidade às suas virtudes (heróica ou exemplar) tidas como fora do comum.

O chefe impõe-se e submete os outros às suas ordens em razão, segundo Maurice Duverger, “do carácter naturalmente emocional da entrega ao chefe em quem se confia”. O carisma aparece pois como irracional e afectivo. O chefe carismático deve pois suscitar o entusiasmo pelas promessas, pela excitação das emoções, das paixões, recorrendo, geralmente, à demagogia como método de sedução. O chefe carismático é, em regra, tido como um ícone e, por isto, requer um sistema de culto da personalidade para hiperbolizar as suas qualidades, dar falsa aparência dos seus defeitos, drenar os efeitos dos seus erros e tornar perene a sua utilidade simbólica e prática. Deste modo, o chefe logra o consentimento dos seus seguidores que o impõem ao conjunto da sociedade. Por esta razão, em regra, o chefe carismático apoia-se num grupo carismático central, estabelecendo uma hierarquia do carisma, em que somente o carisma do chefe é pessoal, sendo o dos demais abstracto e “institucional”. O grupo central carismático aparece também como um instrumento do chefe para reforçar o seu poder; utilizando a inveja e acicatando as rivalidades, no seu seio, o chefe aparece como sendo o único capaz de fazer a síntese entre os interesses e as rivalidades presentes. Por outro lado, o chefe dirige o grupo central carismático manipulando o desejo e a ambição de todos de fazer parte da elite, jogando com as suas rivalidades também ao nível das várias mediações corporativas e da base popular com a qual desenvolve uma relação mística e demagógica. Não é por acaso que já vimos alguns deles julgarem-se delfins, terem, aparentemente, muito poder e, no dia seguinte, não serem mais nada, passíveis de serem enxovalhados por outros.

É que o “carisma” e o “poder” dos membros desse grupo carismático central é apenas “funcional”, “institucional” no sentido do reforço e defesa do carisma pessoal do Chefe. Aqueles que procuram passar os limites do “instrumental”, são imediatamente decapitados e dão lugar a outros porque é na rivalidade constante que está a continuidade do sistema.

Em situações em que os meios de convicção são escassos, como acontece neste momento, o chefe carismático utiliza o seu prestígio e o papel que desempenha na estabilidade da organização para defender o seu poder pessoal (ditatorial) ou faz chantagem sobre o grupo central (que pressiona as bases de apoiantes) com a ideia da destabilização e da perda das posições adquiridas. É claro pois que num sistema como este a capacidade de sustentação do chefe é indissociável da sua capacidade de distribuição (real ou potencial) de prebendas materiais ou simbólicas.

Nesse dia, a autoridade racional consagrada na Constituição deixará de ser o pilar estruturante da ordem política do país. A autoridade será fundamentalmente de tipo carismático, mesmo que venham a recorrer a imagem do Estado administrativo e a subtilezas da autoridade tradicional, numa mescla funcional perfeita. Para este tipo de regime o mais importante não é modelo de autoridade a que se adere em termos de filosofia política mas a possibilidade do poder ter a sua disposição um modelo funcional e eficaz.

*Cientista político

Publicado inicialmente in jornal AGORA.


Pensar e Falar Angola

Sem comentários: