A maldição do Kane-Wia
No interior da província do Namibe, em Angola, existe, próximo da pequena povoação de Virei, em pleno deserto, um morro conhecido pelo nome de Kane-wia que, em idioma Tchierero (língua do povo mucubal) significa “quem o subir não volta”.
Mas, para melhor entendermos o enredo da história que pretendo venha a prender a vossa atenção, há que vos situar quer nos locais quer entre os povos que nela aparecem.
Comecemos por falar do deserto do Namibe.
O Deserto do Namibe é um grande deserto no sudoeste da África. A palavra namib, no idioma local, significa "enorme" e de facto o deserto ocupa uma área de cerca de 50.000km², estendendo-se por 1.600 km ao longo do litoral do Oceano Atlântico no sul de Angola e na Namíbia. A sua largura leste-oeste varia de 50 a 180 km.
É considerada como sendo o mais antigo deserto do mundo, tendo permanecido em condições áridas ou semi-áridas há pelo menos 80 milhões de anos.
A sua aridez é causada pela descida de ar seco arrefecido pela corrente fria de Benguela que passa na costa da Namíbia e nele existem perigosas zonas de areias movediças, possui as mais altas dunas de areia que chegam a ultrapassar os 100 metros de altura e as suas temperaturas podem chegar aos 60 graus centígrados.
E vou, agora, falar-vos de um povo que, em Angola, se denomina, na sua generalidade de himbas com uma derivação denominada mucubais ou cuvales.
São descendentes de povos camitas, Camitas é a denominação dada aos povos do norte da África que, de acordo com o Gênesis, seriam descendentes de Cam, segundo filho de Noé e que terão sido os primeiros habitantes do antigo Egipto.
São bantus do grupo etno-linguístico Herero, que existe tanto em Angola, como na actual Namíbia. As mulheres praticam uma agricultura muito rudimentar, quase reduzida a massango e massambala, (cereais de Angola) com que enriquecem as dietas alimentares.
Como povos pastores que são, habitando regiões semi-desérticas, com naturais carências de água e forragens, praticam, naturalmente, a transumância.
A estrutura familiar aponta no sentido do sistema matrilinear, como acontece com os restantes bantus, embora, aqui, muito moderado, porque os Pais partilham, de certo modo, o poder, dentro do clã.
Acreditam em Deus, mas detectam-se reminiscências totémicas. A par disto, praticam o culto do espírito dos antepassados e consideram o seu gado – bovino - sagrado. Cada chefe de clã é o "quimbanda (médico) medium" que preside ao sacrifício do gado. Alimentam-se de frutos silvestres e, predominantemente de carne, leite e seus derivados em especial de uma bebida feita de leite azedo, uma espécie de iogurte, a que dão o nome de malulu e de manteiga. Abominam comer qualquer espécie de peixe, não apenas por uma questão de gosto mas porque o seu organismo é incapaz de processá-lo.
Como chegaram, estes povos a Angola, mais propriamente ao Sul de Angola cuja existência se processa numa área que engloba as margens dos rios Bero, Giraúl e Vintiaba ou Bentiaba? Um parêntesis aqui para vos dar o significado de Vi-Ntiava, lugar onde se pode achar lenha o que pressupõe a sua raridade e cujo nome seria, mais do que isso, uma informação importante para os povos da região.
Voltemos aos hereros. Durante o século XVI, os Hereros, pastores negros que viviam na região dos Grandes Lagos, no que hoje constitui a Etiópia, iniciaram uma longa viagem para sudoeste.
Os Grandes Lagos Africanos são, de sul para norte: o Lago Niassa, partilhado por Moçambique, Malawi e Tanzânia; Lago Tanganica, que faz a fronteira entre a República Democrática do Congo, a Tanzânia e o Burundi; Lago Kivu, que separa o Ruanda e República Democrática do Congo; Lago Eduardo e Lago Alberto, que separam o Uganda da República Democrática do Congo; Lago Vitória, que é o maior de todos, encontra-se entre os dois ramos (oriental e ocidental) do Vale do Rift e é partilhado pelo Quénia, Uganda e Tanzânia; e Lago Turkana, no Quénia. Os lagos Vitória, Alberto e Eduardo vertem as águas no Nilo Branco. O lago Tanganica e o lago Kivu desaguam no rio Congo, enquanto que o lago Niassa desagua no rio Zambeze mas, dizia eu, os pastores Hereros, no século no século XVI, voltaram costas aos solos gastos do que havia sido até essa altura a sua pátria dando, então, começo, com o seu gado, a uma extensa viagem para sudoeste, em busca de pastos e de sobrevivência.
Segundo o que se presume ter sido um dos seus itinerários, irromperam pelo que viria a constituir, muitos anos mais tarde, a fronteira oriental de Angola. Rumando a ocidente, atravessaram o coração do Bié, uma das províncias do centro angolano, contornaram por norte os domínios das tribos nhanecas-humbes e desceram enfim do planalto em direcção ao mar, um pouco abaixo da actual Benguela.
Diz a tradição que, a certa altura da sua longa viagem, chegaram ao alto de um “plateau” limitado pelo “canyon” daquele que hoje se chama rio Giraul, um rio que só se enche na época das grandes chuvas do sul de Angola, em especial as que se abatem sobre o planalto da Huíla, na serra da Chela,
Planalto onde se situa a cidade do Lubango, antiga Sá da Bandeira, e do alto do “plateau” sobranceiro ao rio, avistaram a imensidão azul do Atlântico. Elevando o seu bordão de pastor o chefe dos hereros gritou par que todos ouvissem “ Ondgiraul” – A Terra acabou. E ali pararam, à beira do profundo “canyon” seco do rio.
Achavam-se numa faixa de território espartilhada entre as vagas do Atlântico e as cadeias montanhosas da serra da Chela, imponente nos seus mais de dois mil metros de altura. Era uma imensidão escalvada e pedregosa, crestada de mil sóis, com pouco mais de uma centena de quilómetros de largo nalguns pontos. A vegetação, definhada e triste, animava-se a espaços com manchas de arbustos e arvoredos ralos. Para os lados do mar desdobrava-se um cordão arenoso de enseadas e baías, divididas por arribas de um dourado vivo, confinantes com o deserto do Namibe. Na parcela mais meridional deste mundo inóspito estendiam-se grandes dunas movediças, a que as ventanias salgadas arrancavam turbilhões espessos que encobriam a luz solar (...)
Secos, altivos e ferozmente independentes, os Cuvales chegaram ao território com as suas mulheres de invulgar beleza de olhos amendoados e cintilantes, o sorriso enigmático, a cabeça coberta pelo gracioso chapéu de pele de carneiro e procederam, sem delongas, à conquista das áreas mais fecundas. (...)
Senhores de uma nova pátria, desembaraçados de qualquer oposição séria, os Mucubais, tal como os restantes hereros, disseminara pelo território a sua lei e mantiveram intactas as suas tradições. E a propósito de tradições se ainda se lembram, no início desta conversa referi um morro conhecido pelo nome de Kane-Wia, em português “quem o subir não volta”
Lenda ou realidade, o que é certo é que se dizia que nunca alguém ousara subir o morro porque as histórias contadas pelos Mucubais impunham medo e respeito aos angolanos.
O Kane-Wia, vivia, por isso, sossegado e inexplorado, uma espécie de montanha sagrada onde Deus dorme e, por esse motivo, interdita ao comum dos mortais.
Em 1937, porém, numa das suas missões científicas, um eminente biólogo da Universidade de Coimbra, o Dr. Luís Wittnich Carrisso, veio até ao Namibe para estudar a flora local. Acampada na parte do deserto do Namibe que é conhecida, também, como deserto de Moçâmedes, a 2 quilómetros do morro das Paralelas, no qual se situa o Kane-Wia e a 102 quilómetros da cidade de Moçâmedes, hoje, também denominada Namibe, estava a equipa de Luís Carrisso.
Como homem racional e de ciência que era, Luís Carrisso, movido pelo espírito de investigador e pouco dado a crendices populares, resolveu contrariar a crença subindo o Kane-Wia.
Mas quem era, afinal o doutor Luís Carrisso?
Luís Wittnich Carrisso nasceu na Figueira da Foz a 14 de Fevereiro de 1886, filho de Ignácio Augusto Carrisso e da holandesa Leopoldina Wittnich.
Luís Carrisso, aos 22 anos, licenciou-se com 19 valores na Faculdade de Filosofia Natural da Universidade Faculdade de Coimbra. Aos 25 anos doutorou-se na de Filosofia Natural com a tese “Materiais para o estudo do plâncton na costa portuguesa — fascículo I”. Aos 26 anos foi nomeado assistente do grupo de Ciências Biológicas da então já Faculdade de Ciências tendo apresentado, para esse concurso, o trabalho “Materiais para o estudo do plâncton na costa portuguesa — fascículo II.” Nos seis anos seguintes Carrisso exerceu docência. Em 1918 foi nomeado professor catedrático e, no mesmo ano, com 32 anos, foi nomeado o 15º director do Jardim Botânico, em Coimbra. Em 1921 convidou, para o lugar de assistente e jardineiro chefe, o licenciado Francisco d’Ascenção Mendonça.
Organizou várias herborizações em Portugal e desenvolveu a colaboração com amadores, alguns antigos alunos, que regularmente enviavam material das então colónias portuguesas. Foram as suas actividades em África, que duraram 10 anos bem difíceis, que substancialmente alargaram o Herbário de Coimbra
que enriqueceram, de forma substancial seu currículo, conferindo um enorme prestígio à sua longa história de homem das ciências e homem público.
Foi, pois, este notável homem da Ciência que, 1 de Junho de 1927, acompanhado do seu amigo e assistente, Francisco Mendonça partiu para a primeira de três missões que constituiriam a denominada Missão Botânica a Angola. A verba era pouca e, portanto, a organização foi modesta, contando apenas com material simples para herborizações e equipamento fotográfico. Viajaram em condições difíceis como era, e é ainda, habitual em África, condições que foram registadas em várias memórias fotográficas e escritos. Passam mais de metade do tempo na zona remota do noroeste de Angola com uma demorada visita ao deserto de Moçâmedes. Foram ainda a Cabinda e ao Congo Belga. Chegaram a Lisboa a 13 de Dezembro do mesmo ano com grande quantidade de material vegetal.
Mas, o encanto africano, a magia das terras angolanas tinham tocado, não apenas o homem, mas, em especial o cientista, o investigador.
Totalmente enfeitiçado por África, Luís Carrisso mal regressou a Portugal planeou, de imediato, a segunda expedição, a qual teve lugar em 1929, sob o título “Missão Académica a Angola”. A expedição foi pensada, para além do aspecto científico, com uma importante vertente pedagógica, como uma grande aula prática de campo. Nela participaram 22 pessoas entre professores universitários de todo o país, alunos universitários dos últimos anos, Francisco Mendonça, Luís Carrisso e Ana Maria, sua esposa. A experiência científica e pessoal constituiu qualquer coisa de único na vida dos aprendizes de expedicionários tendo-se estabelecido uma profunda empatia entre os elementos do grupo. Partiram de Lisboa a 10 de Agosto, percorreram 6.000 km em Angola onde estudaram a flora, a fauna, as potencialidades económicas, as condições de vida social e os problemas locais, tendo colhido mais de 25.000 exemplares da flora angolana.
Ao todo, o Professor Luís Carrisso e a sua equipa realizaram, em Angola, três expedições, que totalizaram mais de 30.000 quilómetros percorridos e permitiram a colheita de material que veio a dar origem a importantes trabalhos científicos sobre a flora angolana, em especial do deserto, entre os quais se destacam “Syllogue Florae Angolensis” e “Conspectus Flora Angolensis “. O material herbário colhido durante estas expedições, constitui importante material de referência de uma parte muito interessante de África, resultando, daí, a grande importância destas colecções históricas e destes trabalhos de enorme valor científico que foram juntar-se às colecções de John Gossweiller e do grande cientista austríaco,
Friedrich Welwitsch (1806-1872) que
ao serviço de Portugal, fez explorações botânicas em Angola, e que, há150 anos, a 3 de Setembro de 1859 (pouco antes, portanto, de sair a primeira edição da Origem das Espécies de Darwin). descobriu, classificou e deu nome a uma das mais extraordinárias plantas do mundo, a célebre e rara Welwitschia que havia de imortalizar o seu nome. Num trabalho diz sobre a notável descoberta o seu autor dá conta da satisfação e surpresa do grande cientista quando: "na terra árida, apenas cruzada pelas zebras e pelas cabras de leque, quedou-se extasiado ante um ser vegetal, que era a materialização da própria sede; uma planta maravilhosa, nascida na areia escaldante do deserto e abrindo, como súplica dolorosa, as longas folhas metálicas para a luz. Ajoelha junto dela para a observar e apalpa-a jubilosamente".
E quem, hoje, visite o cemitério de Kensul-Green, em Inglaterra, poderá ver, na placa que cobre o mausoléu de Friederich Welwitsch, esculpida, a estranha planta.
Frederico Welwitsch, tal como Carrisso, deixou-se encantar pela natureza africana a tal ponto que só abandonou aquele continente quando a malária tornou insuportável a sua permanência. O nome científico da espécie, Welwitschia, foi, portanto, dado em homenagem ao seu descobridor, Friedrich Welwitsch e mirabilis pela sua extraordinária e admirável configuração e raridade, tão rara que foi preciso criar um género novo para integrar esta espécie, tal a diferença existente entre ela e todas as espécies então conhecidas.
A welwitschia mirabilis, denominada Tômbua em língua mucubal, chega a ser milenária, tem um caule duro, quase pétreo, do qual saem apenas 2 folhas, que chegam a atingir quatro metros de comprimento e que crescem lentamente, esfarrapando-se e subdividindo-se nas extremidades, dando a sensação de ter muito mais folhas do que na realidade possui. Estas características mais não fazem do que comprovar os prodigiosos mecanismos de adaptação a ambientes adversos de que os seres vivos são capazes. Crescer no deserto como ela faz parece um verdadeiro e inexplicável milagre!
E agora voltemos à história do homem que desafiou o Kane-wia.
Em Junho de 1937, em Angola, Luís Carrisso iniciou a sua terceira expedição científica de investigação no deserto do Namibe. Estava acompanhado por sua esposa, Ana Maria de Sousa Wittnich Carrisso, Francisco da Assunção Mendonça, naturalista do Instituto Botânico de Coimbra, Jara de Carvalho, assistente do Instituto Botânico de Coimbra, Francisco de Sousa, colector do Instituto Botânico de Coimbra, Arthur Wallis Exell, naturalista do British Museum, de Londres e esposa e John Gossweiller, botânico suíço ao serviço de Portugal em Angola.
Numa segunda-feira, 14 de Junho de 1937, a equipa iniciou a subida do Kane-Wia colhendo plantas. Repentinamente, o cientista sentiu-se mal e parou para descansar durante algum tempo, ajudado por sua mulher Ana Maria e pelo seu companheiro Francisco Mendonça, que o convenceram a regressar ao sopé do morro sob a condição de, no dia seguinte, continuarem o trabalho. A expedição regressou aos veículos, Luís Carrisso pelo seu pé, sem ajuda, já se sentindo melhor. À beira da tenda do acampamento, um cajado numa mão, um molhe de plantas na outra, enquanto lhe preparavam a cama de campanha acabou por concordar que fossem chamar um médico a Moçâmedes. Deitou-se, ajeitou-se na cama e morreu pouco depois. Fosse por mera coincidência ou por estranhas razões nas quais muitos não deixam de incluir a crença mucubal, “quem o subir não volta”, o grande cientista português, sucumbiu, de ataque cardíaco, em pleno deserto do Namibe, ao escalar o Kane-Wia. Quem hoje passa por aquele local pode, ainda, ver a placa que ali foi colocada há mais de setenta anos: “Dr. L. W. Carrisso XIV-VI-MCMXXXVII”.
(1937)
A maldição do Kane-Wia tinha-se concretizado.