quarta-feira, 24 de junho de 2020

João Melo, irreverente e livre

João Melo, irreverente e livre

Adriano Mixinge
Para mim, ele começou sendo apenas um poeta mais. Soube que existia, em finais dos anos 80: os seus primeiros seis livros são de poesia, tendo o primeiro deles, “Definição”, sido publicado em 1985.
Mas, foi “Fabulema”, o livro que publicou no ano seguinte, o que me chegou às mãos, na “Ciudad Libertad”: o livro estava entre vários outros na caixa de livros, que, em 1990, a minha irmã São me ofertou quando eu ainda vivia naquela cidade universitária, no bairro de Marianao, em Havana.
Para ser sincero, na altura, dei pouca ou nenhuma importância àquele livro de João Melo (Luanda, 1955). Depois de tudo, - creio ter pensado na época -, no nosso país, os poetas surgiam e proliferavam como cogumelos depois da chuva, para além de que, como sabemos, apesar do muito que se publica em poesia, escasseiam os bons livros deste género literário: eu sempre tive ( e continuo a ter) dificuldades em encaixar o João Melo, entre os poetas da geração 80 e ainda bem.
Porém, apesar do escritor ter publicado “Limites & Redundâncias” (1997), quando eu já tinha regressado à Angola e vivia, em Luanda, foi com “Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir” (1998) que eu desfrutei, fartei-me de rir e descobri o escritor livre, sem tabús e irreverente que ele é: a ideia do escritor insosso, asfixiado na sua própria gravata, sério, que nunca foi boémio e bon vivant como eu imaginava - talvez, com pouco tino-, que tinham sido os “escritores revolucionários” dos anos 60 e 70 esvaiu-se, completamente, quando eu li o primeiro livro de contos de João Melo, foi uma autêntica revelação.
Falando sobre a obra do escritor, o ensaísta Pires Laranjeira, professor da Universidade de Coimbra (Portugal) afirma que: “é imperdoável o desconhecimento de uma obra contística única nos cinco países africanos de língua portugesa, que não busca o efeito castiço de origem étnico-pop, nem o delicodoce das ternurentas aventuras infanto-juvenis ou das estórias piadéticas para entreter turistas, que merecem o seu lugar”.
Apesar de ter escrito e continuar a escrever poesia, o conto é o género literário em que João Melo se exprime e se espraia com maior acutilância, com muita piada, com um humor por vezes corrosivo e com absoluta liberdade: quem quiser compreender as subtilezas, os acertos e desacertos de parte significativa da sociedade angolana actual deve ler, atentamente, os livros de contos do escritor.
João Melo é um dos escritores que melhor soube navegar dentro do sistema político, social e económico que se instalou, em Angola, nos últimos trinta e cinco anos, adoptando diferentes perfis sócio-profissionais, mas, em todos eles, e à sua maneira, empurrando as barreiras do conservadorismo, ajudando a consumar transformações positivas dentro do próprio sistema: jornalista, publicitário, professor universitário, consultor e político.
“O dia em que Charles Bossangwa chegou à América” é o seu mais recente livro, que reúne contos escritos entre 2017 e 2019. Editado pela editorial Caminho, com prefácio de Maria Teresa Salgado da Universidade Federal de Rio de Janeiro (Brasil), este livro de contos de João Melo traz sete contos, nomeadamente, “O país está desgovernado”, “Uma pequena saga ministerial”, “o perigo amarelo”, “Uma mulher séria”, “O torcicolo”, “O angolano que não gostava do verbo malhar” e “O dia em que Charles Bossangwa chegou à América”.
Longe da ideia e da atitude de intelectual eremita e solitário, apático e indiferente ao seu tempo e às suas circunstâncias, João Melo é um cidadão que fez-nos ouvir sempre a sua voz – a troca de galhardetes com o actual embaixador do Brasil em Angola foi uma consequência das posturas e ideias que bem defende - e não tem receio nem tabú nenhum em abordar temas escabrosos, - já sejam eles temas sociais, políticos e ou sexuais-, falar sobre os problemas e as inquietações do homem, em todas as suas facetas existenciais.
“Mestre do conto”, no dizer da professora Maria Teresa Salgado da Universidade Federal de Rio de Janeiro (Brasil), João Melo é, sobretudo, um escritor irreverente, útil, livre e à ler, permanentemente.
Ele é o contista que não devemos ignorar.
in Jornal de Angola
23-06-2020


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