segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Luanda, era uma vez na Baixa

Luanda, era uma vez na Baixa

Rui Ramos
5 de Outubro, 2019
Ao domingo, entre o largo do Baleizão e a Lello, a avenida Rainha Njinga, antiga avenida dos Restauradores, transforma-se numa pista.
Apesar da sua proximidade com a principal esquadra da Polícia Nacional, a larga via não é patrulhada nem possui qualquer sinalética horizontal, num vasto percurso, nem passadeiras para peões. Quando cai a noite, um grande troço mergulha na escuridão por ausência de iluminação pública, mas ao lado do degradado e agora entaipado Baleizão a iluminação funciona sempre em quatro postes, dia e noite. No lado oposto, há troços sem iluminação, que só surge lá no fundo, nas imediações da empresa francesa Total.
Não é raro ver-se, aos domingos, carros e motorizadas a alta velocidade e jovens a patinar nas faixas, tudo num zigue-zague despido de temor no meio de centenas ou milhares de jovens que vão ou vêm da Ilha a pé e passam rapidamente pela “cidade” ao encontro dos seus bairros. É a rua que liga a Fortaleza de S. Miguel, hoje Museu Militar, e anfitriã do centro comercial Fortaleza, ao centro da cidade. A encosta da fortaleza já foi poiso de macacos nos tempos idos do colonialismo e a rua que a circunda lugar de namoro romântico.
O centro de Luanda onde imperam os altaneiros e novéis prédios da Sonangol, em vias de ser privatizada, a antiga livraria Lello, hoje fantasmagórica, o largo da Portugália, onde os portugueses faziam câmbio paralelo, com as suas duas árvores-avós, o prédio da Biker - ainda com alguns serviços, como a Foto Ngufo, e com um “restaurante típico", fechado com chapas e onde ratos e insectos convivem com o povo real que aí almoça por mil kwanzas, num ambiente “apocalíptico” -, que já albergou mesas de snooker e ambiente de tertúlia de jornalistas, outros tempos, pré-históricos, de que não restam escritos. Ali ao lado destruíram o largo e edificaram dois blocos de vidro com dezenas de andares, onde trabalha uma classe burocrática nacional-expatriada.
Mas a grande avenida não se detém, na esquina onde era a Sonylândia e hoje é um banco, estreita-se, a Moviflor portuguesa substituiu o luxuoso Quintas & Irmão, cujo dono permaneceu na Independência, mas viu a sua casa ocupada ilegalmente, e o fundo da rua desemboca no Eixo-Viário, uma obra feita pelo colonialismo português, que liga o Kinaxixi à Marginal e ao Miramar, hoje quase toda castanha e sem verdura, com iluminação aqui e ali.
As árvores começaram a ser arrancadas em 1975, quando começou a faltar o carvão para cozinhar, e o Largo do Ambiente é frio, nada acolhedor, quase escuro e sem presença humana. Eixo-Viário do antigo Benfica de Luanda do Victorino Cunha, onde os portugueses plantaram verdura nas barrocas e a Independência construiu arranha-céus da Sonangol e de outras empresas estatais majestáticas. Os abandonados e degradados edifícios coloniais, com janelas com persianas, são na maioria “fantasmas” mudos e quietos, desafiando o futuro da capital.

Um mundo novo
Os colonos foram embora e o Estado tomou conta das suas propriedades, expropriou e começou a vender a si próprio ao desbarato. Os elevadores foram destruídos e transformados em contentores de lixo, os corrimãos das escadas desapareceram, divisões e mais divisões foram construídas sem qualquer plano ou segurança para albergar familiares vindos dos bairros e do mundo rural, nada oferecido, tudo pago.
Os quintais foram apropriados por quem chegou primeiro e transformados em autênticas “pensões residenciais” surreais, com divisões precárias e sujas alugadas a bom preço, 40-50 mil kwanzas mensais, porque estão na cidade e Luanda é a cidade mais cara do mundo. Os quintais, ou melhor, os cubículos também são alugados ao dia às zungueiras para guardarem as mercadorias que não conseguem carregar para os seus casebres nos bairros.
Mas não só, os quintais são pontos de grande tráfego comercial, sobretudo, de bebidas alcoólicas, quem os detém há mais tempo usufrui de tudo o que pode acrescentar dinheiro sem muito trabalho.
Os terraços não existem. Em seu lugar surgiu uma miríade de cubículos, muitos de chapa, sem água e quase sempre com luz puxada de gatos e paga mensalmente a alguém, alugados por quem chegou primeiro ao prédio e se diz “dono”. O luandense é manso. Quando lhe falam “o dono”, se cala, se ajoelha, submisso, e paga, mesmo que o dinheiro não seja o seu, e depois diz em voz baixa “está mal”.
Sem árvores
Só se encontram árvores com troncos muito grossos, sinal de longa vida, árvores coloniais, no Largo do Atlético, hoje largo sem nome definido, mas que 44 anos após a proclamação da Independência continua a celebrar a batalha de Ambuíla, que ditou a perda da soberania do Reino do Congo e a decapitação do rei, cuja cabeça foi transportada para a ermida da Nazaré, na Marginal, que este ano comemora 355 anos. Um largo agora fechado e em obras sem prazo. As vendedoras dizem-me que passou para a propriedade do banco BCI, "se apropriaram", diz-me um jovem que todos os dias me pede dinheiro para comer.
Do BCI não é o urinol da esquina, que não funciona, nunca funcionou. Importado a peso de ouro do Brasil, a “casa de banho” faz parte de outras talvez centenas espalhadas pela cidade que nunca funcionaram. Ninguém conhece os contornos do negócio, apenas se sabe que nunca funcionaram, nem se conhece ninguém que tenha lá dentro urinado.
O Rialto já não existe, só ficaram as saudades dos apetitosos pregos com jindungo e os finos tirados com a pressão exacta. Em seu lugar, recentemente, foi construído um alvo Monumento ao Soldado Desconhecido. Os jovens não sabem o que isso seja, imaginam, segundo me disse um jovem na rua, ser um soldado sem registo de nascimento.
Ali ao lado estão os Correios, já centenários, mas de que ninguém parece tirar utilidade. Perguntámos a um jovem, vagabundeando por ali, o que são os correios. Ele olhou, tranquilo e respondeu muito sereno “não sei, pai”. Ninguém sabe nada, aqui nesta cidade. Também não precisam de saber. O tempo parou, sitiado entre a madrugada das 6 horas e o pôr do sol das 18 horas, vaivém, a cidade se povoa e despovoa, aqui se faz tudo, mas ninguém é daqui, as pessoas desabitam aqui, por isso não há tempo.
As fugitivas da Independência
Os extremos da extensa avenida Njinga ou Jinga ou Nzinga ou Ginga são dominados pelo banco estatal BPC, a agência Kaponte e a agência lá do fundo perto do Eixo Viário, ao lado da Unitel. Ninguém sabe o que é Kaponte, os jovens, desempregados, não sabem nada, não lhes diz respeito. Mas Kaponte pode ser uma pequena ponte, aquela ponte que liga à Praia do Bispo e onde se mataram, dizem, brancos desesperados com dívidas ou com desamores, naqueles tempos remotos.
Lá dentro do BPC, para onde os mais velhos espreitam, diz-nos o jovem Mbambi, nunca há sistema nos computadores, especialmente, reforça, depois das 14h-14h30. Os funcionários querem ir para casa e não toleram ser retardados por clientes sem dinheiro, mas com problemas complexos deles, de primos e tios que obrigam a consultas demoradas.
Lá fora, um mundo mudo, ninguém fala, toda a gente parada sentando-se onde pode. É o mundo das kinguilas, as cambistas de rua, as verdadeiras bancárias do sistema, que também vendem recargas da Unitel, são dezenas largas de mamãs opulentas, vigilantes, carregadas de kwanzas e de divisas, inexistentes nos Bancos. A operação Transparência não lhes toca, parecem da família. Só dão corrida nas pobres zungueiras que povoam a Baixa durante o dia, sempre com um olho aqui outro ali, já estrábicas, tipo ciganas na Europa, prontas a correr em defesa da mercadoria. São as fugitivas da Independência.
Mas é também o mundo dos pensionistas, centenas, ou milhares todos os dias desde manhã cedo, ainda quase escuro e ao som dos primeiros pio-pio dos agora raros pardais, seres ainda vivos se abeirando do óbito, tentando ver se a pensão já caiu. Não têm cartões multicaixa, levam um papelinho muito gasto ao balcão com nome e número da conta para averiguar. Começam a entrar às 8h00 e só param no início da tarde, comendo poeira e fome.
A burguesinha, essa, trabalha nos Bancos enquanto não há despedimentos. Fatinhos com calças e casacos apertados, elas com boas roupas oferecidas por não se sabe quem, com vestidos parecendo que estão na “City” de Londres. Em comum, têm a vaidade, a arrogância, a jactância, a mente vazia. Não dão confiança aos pobres, aos sujos, como que para enxotarem a sua consciência. Ah, os burguesinhos da Sonangol também não se misturam. Mas às 12h00 eles ficam com água na boca, quando os inexistentes aparecem no muro baixo com dezenas de recipientes de alumínio com almoço para venda, cada mil.
Os pobres? Estão por todo o lado na Baixa de Luanda, imóveis. Pobres, é uma maneira de escrever, porque nem mesmo todo o dinheiro do mundo os tiraria da pobreza, porque, na verdade, têm medo da riqueza, assusta-os, não saberiam o que fazer com ela. Como se a pobreza fosse já uma tatuagem na pele.
Mundo dos pescadores deu lugar à nova Ilha
A Ilha, de um lado e de outro, onde o Sol nasce e o Sol se põe, era o mundo dos pescadores, um povo que nunca se misturou com os continentais. Os homens, de panos, vinham à cidade dos brancos à tarde, vender ostras e eram exímios nadadores. Não se sabe como a Ilha de Luanda se degradou, foi rápido. De repente a Floresta foi invadida pelo lixo, por rapazes e delinquentes, pela Polícia Fiscal e por barcaças transformadas em empresas.
O hotel Panorama, único no mundo onde os quartos virados para o oceano eram mais baratos do que os quartos virados para a cidade, ninguém sabe como foi destruído, ninguém sabe de nada. Lá dentro há quadrilhas de miúdos, sobrevivem dia-a-dia, entre cheiro de gasolina, liamba e outros acessórios de morte, fugindo à Polícia que os vai rusgando de vez em quando.
Assim, sem mais nem menos, os afortunados conseguiram boas casas. Foi só mandar fazer obras com o dinheiro do OGE. Outros, amancebados com o poder, construíram prédios que noutras partes do mundo são proibidos junto à praia. Os primos começaram a pedir para abrir bares e restaurantes. “São meus primos”, disse-me alguém, “que podia fazer senão autorizar?”.
Há muitos anos, a Ilha estava dividida. As praias não eram universais, havia as dos brancos e a dos “patrícios”.O Harlém era em frente da Marinha e os brancos não punham lá os pés, não se misturavam. Depois passou para os soviéticos que estavam na Marinha, iam todos de igual nadar.
No fundo da Ilha, de um lado e do outro, no Cabo e na Chicala, podia-se namorar dentro do carro, mesmo em 1980 havia segurança. À noite podia-se romantizar, mas depois tudo mudou. Os namoros foram para outros lados; o Cabo foi entaipado com obras, já não se chama assim, é o “Ponto Final”. A Chicala já não tem a rotunda nem asfalto e foi tomada por populações que sobrevivem de muitos negócios, desde venda de peixe, mufete, prostituição e, curiosamente, golpeando veleidades turísticas, o parque de recolha de viaturas do Governo Provincial de Luanda assentou arraiais na Praia do Sol, onde nós íamos com as nossas namoradas nos idos 1960.
Hoje, já ninguém fala dos pescadores. Parece que foram tragados pelo mar. Diz-se "vamos à Ilha comprar peixe", mas não se diz a quem se compra, é a alguém indefinido. Na Ilha, hoje, coexistem sem se misturar os portugueses com as suas praias quase privadas e milhares de jovens que deambulam sem sentido, bebendo cerveja ou convivendo apenas, enchendo todos os espaços ao fim de semana e semeando as praias com cacos de garrafas de cerveja.
A Ilha descaracterizou-se, está entaipada. Do lado direito, infindáveis muros de chapa escondem as praias e a Baía, de noite, longos percursos da avenida estão ás escuras e não é agradável. De repente, encaramo-nos com as rotundas sem iluminação. Mas imperam os restaurantes de luxo, de um lado e de outro, com animação nocturnas, mas sem saneamento básico, tudo improvisado, come e os restos deita no mar.
A Baixa
A Baixa de Luanda sem a Marginal não teria norte, já não tem o Porto Pesqueiro frente ao Banco Nacional, nem o Mercado Municipal. Mas ainda tem a Alfândega, a Marinha e a Polícia, convivendo com arranha-céus dignos de um Abu Dabi, com auto-saneamento e auto-energia, onde vivem ou trabalham exemplares da classe alta burocrática, despachando com tranquilidade os expedientes, porque aqui não há pressa para nada.
Para o interior, as ruínas dos armazéns do Minho, onde as senhoras brancas iam comprar tecidos e vestidos, um mundo que se extinguiu, só sobrou o Mabílio Albuquerque que vende “coisas”. A Baixa de Luanda é um extenso e intenso “musseque”, tudo está ocupado, parece que as poucas árvores poluem, cortam-se, ocupam lugares que podem ser rentabilizados pelos miúdos vindos do fim do mundo e que tomaram conta das ruas durante o dia, arrumando e lavando os carros, com “puxadas” de água gratuita da EPAL.
Rainha Njinga, a estátua, enorme, jaz à entrada da fortaleza, à espera que os arranha-céus do Kinaxixi, onde eu já vi uma grande lagoa com uma mafumeira e um majestático mercado de frescos verdadeiros, vindos das hortas da cintura de Luanda, sejam pagos, um dia, um dia, como os portugueses dizem, de “são nunca”.
Avenida Rainha Njinga, que podia ser uma metrópole, mas que em dias de enxurradas se transforma em rio lamacento, lançando água na Baía, rua da dança capoeira dos domingos à tarde, dos candongueiros para os “congolé”, das zungueiras em frente da Sé, que deixou se ser Sé, mas mantém a travessa, vendendo fruta, tambarindos, maçâs da índia, loengos, gajajas, caju, mangas, mulheres sem sorriso sentando no fio do muro ou na pedra para endurecer os interiores, fugindo, fugindo dos fiscais da Administração, submissas, a sua mente se organizou há muito, netas dos rusgados dos cipaios do chefe do posto Poeira.
As galerias Kibabo abriram onde era a antiga, luxuosa e branca Versalhes, agora também dirigidas por brancos, um mundo de compra e venda de tudo: plásticos baratos, pequenos empregos que mal dão para apanhar o candongueiro. Mas a actividade comercial atraiu também um enxame de rapazes sujos, de cabelo a ficar russo, que enfrentam tudo e todos os poderes para ficarem na porta, pedindo esmola para o pão ou para os pais ou para outras coisas.
Há muito, muito tempo, a Baixa era apropriação de uma parte da população branca. A população negra vinha dos bairros, a pé ou de autocarro, trabalhar nas fábricas, nas lojas e nas casas. Muita gente passava a correr pela pensão Fomentadora, no Kinaxixi, para comer uma grande sandes de peixe frito e uma grande caneca de café muito açucarado. Pré-História.
No dia da Independência, no próprio dia, a Baixa transfigurou-se, parecia não existir, nem uma só alma nas ruas, sentia-se medo pela solidão, tinha sido o mundo dos brancos, que de repente foram embora. Quem primeiro se apropriou nos novos tempos da Luanda africana foram os “regressados do Zaire”, invadiram tudo, criaram a venda parada no chão das ruas, não era raro encontrá-los na Mutamba, de manhã, em pijama, na rua. Todo o mundo queria sair dos bairros e viver na cidade do asfalto. Mas era um mundo estranho, não era do povo, era algo que se plantou ali, vindo de fora.
Que futuro?
Sem transportes públicos, sem uma malha comercial digna desse nome, sem saneamento básico conhecido, com escassos minimercados, sem um mercado de frescos, nem sequer uma livraria digna desse nome, a Baixa, e sobretudo a sua parte central, a extensa avenida Rainha Njinga é a parente pobre da Marginal, reconstruída e embelezada pela Independência.
Aí coexistem as classes mais altas e as mais baixas, como dois mundos intocáveis. A degradação do entaipado prédio do antigo “Diário de Luanda” contraria os arranha-céus de vidro, que parecem redomas extraterrestres numa Luanda que precisa de ar, de vento, de céu. Nos becos, também há becos e contrabecos desaguando na Rainha, mil negócios silenciosos. A liamba instalou-se num trono de que não abdica, imperando nos lados dos degradados Coqueiros, outrora coqueluche dos brancos.
Há um plano director, dizem, mas tudo tem plano director em Angola, tudo tem “desiderato” e tudo vai acontecer “brevemente”. O futuro é, pois uma incógnita, como o “X” de uma equação simpels, mas que se complica pela incompetência, pelo laxismo, pela corrupção transversal à sociedade. Por trás de um aparente modernismo, toda esta vasta zona, outrora “chique”, alberga centenas de milhares de pessoas em cada canto, casebres construídos dentro de outros casebres.
Já não há terminal de autocarros digno desse nome na Mutamba. O poder agora é dos candongueiros e dos “corolas”, pão e cerveja de muitos lares. Em plena Rainha Njinga, sim, funciona a “Mutamba”, na esquina frente à Embaixada da Guiné, candongueiros de e para os subúrbios. Tentaram “colocar” mini-autocarros, mas só os vi um dia.
O que vai acontecer a tantos edifícios degradados no tempo colonial? Como será a cidade de Luanda daqui a 20 anos? O futuro a quem pertence? Quem agarra nele com coragem e sem medo? Os “velhos luandenses” estão em risco de extinção. Em seu lugar, uma multidão dessincronizada de jovens, “por enquanto jovens”, imigrantes, vindos de todo o lado, que de Luanda só sabem que têm de ganhar o pão nosso de cada dia e, utopicamente, um emprego.



Pensar e Falar Angola

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