Viagem a Windhoek por Santa Clara
Aterramos em Ondjiva, capital do Cunene, depois de uma tranquila viagem de aproximadamente hora e meia. O brilho intenso do sol obriga as pessoas mais sensíveis a protegerem os olhos. A estação quente atinge o pico nesta província no mês de Dezembro. O calor aperta, apesar da tarde caminhar para o fim. Fora da sala de desembarque, os passageiros deparam-se com motoristas e cobradores que “chamam” para Ondjiva e Santa Clara, o mais movimentado dos quatro postos fronteiriços que ligam o Cunene à vizinha República da Namíbia. Este é um dos principais destinos de boa parte dos viajantes da companhia de bandeira nacional, que garante três frequências aéreas semanais a partir de Luanda. De distintos pontos do país chegam, diariamente, por via terrestre, turistas a bordo de autocarros, táxis colectivos de pequeno e grande porte ou em viaturas próprias.
Muita gente sai directamente do aeroporto para Santa Clara, localidade si-tuada a cerca de 45 quilómetros de Ondjiva.A passagem de táxi comum, vulgo candongueiro, custa 500 kwanzas, mas pode encarecer, dependendo da índole do transportador. Alguns oportunistas só precisam de saber que o passageiro desconhece o tarifário local para alterarem a tabela. Não foi o nosso caso. Ao amanhecer, circulamos com a “viatura oficial” da Edições Novembro, o que ampliou as possibilidades de apreciar paisagens, parar, rever detalhes e rentabilizar ao máximo a estadia.
Antes de nos fazermos à estrada, damos um passeio básico pela cidade. Às 8 horas da manhã, o sol vai alto. O calor seco começa a importunar. Nada que impeça a caminhada. “O segredo é beber muita água, principalmente pela manhã”. O conselho vem do colega aqui radicado há alguns anos.
As repartições públicas abrem pontualmente as portas. Parece que todos se conhecem, porque as pessoas se saúdam com um sorriso autêntico. Ondjiva, porém, está quase irreconhecível. Poucos aspectos lembram a cidade fantasma dos duros anos de guerra. Há muito movimento, mas o trânsito flui. Várias opiniões convergem no ponto de vista se-gundo o qual a gestão do falecido governador Didalewa contribuiu para o visível crescimento dos últimos anos. A “centralidade” construída para albergar os 3 mil desalojados pelas cheias decorrentes das chuvas tem casas que muitos gostariam de deslocar para os seus endereços em Luanda.
O Governo Provincial mudou de sede. A nova biblioteca faz jus ao nome. Há uma igreja construída de raiz, já entregue à Católica. Deve ser inaugurada no início do próximo ano. O Tribunal provincial foi transferido para um edifício com maior dignidade, onde também funciona a Procuradoria Geral da República. Espaçosa e confortável é a sala do juiz presidente. Nela se sente o ar de solenidade que só os magistrados transmitem, incluindo durante conversas informais. Ondjiva cresce a olhos vistos, embora seja cedo para se sentir o impacto da actual governação.
Entretanto, nem tudo mudou. Cercados por chapas, os destroços da guerra continuam no mesmo lugar. Esses, sim, remetem o transeunte para o período em que a aviação sul-africana praticamente reduziu a escombros a capital do Cunene. A província foi palco de batalhas memoráveis que concorreram para alicerçar o espírito pa-triótico contextualizado na devida época. Os cânticos revolucionários que narravam epopeias heróicas exaltavam o facto de o Cunene só ter entrada. “Não há saída”, entoavam os militares, secundados por pioneiros da OPA, imortalizados no programa “Opção”, da TPA. A guerra ficou no passado. O tempo também passa nesta manhã ensolarada. É hora de apanharmos a direcção sul, rumo à fronteira.
Saudar Mandume
Encontrámos a Estrada Nacional 372 em óptimas condições. Os velocistas por vocação são compelidos a desacelerar. A Polícia Nacional montou postos de controlo ao longo da via. Gestualmente, os agentes aconselham os condutores a abrandar a velocidade. Quan-do necessário, mandam parar viaturas para conferir se está tudo em ordem. Quinito Kanhameni, o director provincial da Edições Novembro, que gentilmente se predispôs a servir de cicerone, aposta na prudência. Prefere “caminhar devagar, porque temos pressa. Queremos chegar ao destino”. A rodovia dá igualmente acesso ao Complexo Turístico do Memorial Rei Mandume Ya Ndemmufayo, em Oihole, município de Namacunde.
Inaugurado em 2002, por Sam Nujoma e José Eduardo dos Santos, antigos Chefes de Estados da Namíbia e de Angola, respectivamente, o Memorial foi construído no local onde o lendário soberano perdeu a última batalha diante das tropas portuguesas e inglesas. O Memorial pretende homenagear Mandume e, através dele, todos quantos resistiram à ocupação colonial. Revestido de imenso simbolismo, o espaço é terreno sagrado para os povos da região que veneram a memória do soberano.
“O meu coração me diz que nada fiz de errado”, a célebre frase de Mandume destoa do actual estado do Memorial. Em 2008, foram anunciadas obras de beneficência. A reabilitação do complexo, interrompida por falta de verbas, previa a construção de uma estátua do Rei na antiga “embala”, termo kwanyama que significa “Palácio Administrativo”. Já em Namacunde, sede do município, sente-se a presença da Administração Pública no sossegado município que floresce à beira da estrada. O hospital, a unidade de corpo de bombeiros, escolas e lojas ao redor fazem crer que a localidade tem infra-estruturas. O número de antenas parabólicas sugere que a caixinha mágica leva a informação e entretenimento aos habitantes, conectando-os em torno da grande aldeia global em que vivemos.
Menos interessante é a paisagem natural. Anuncia penúria. As zonas de pasto estão acastanhadas. O capim secou. Em várias ocasiões, bois dispersos da manada cruzam a estrada. Muitos expõem o esqueleto devido à magreza excessiva. Procuram comida e água. As bacias naturais de retenção do \"líquido da vida\" começam a escassear. Os animais percorrem distâncias cada vez maiores em busca da sobrevivência. Não é cordato augurar maus momentos, mas a falta de chuvas pode resultar em catástrofes. Previsíveis, diga-se, porque a seca na região é cíclica. Por outro lado, as consequências das chuvas não são propriamente desconhecidas. En-quanto os seres humanos imbuídos de competências não concebem estratégias para minimizar situações evitáveis, resta a quem pode a opção de perfurar o solo em busca de água. Dos crentes pedem-se orações, com fé, implorando aos céus por dias melhores.
Efeito Resgate
A jornada prossegue. A manhã vai para o fim, quando chegamos à paragem de autocarros e de táxis. À medida que nos aproximamos, multiplicam-se os armazéns, assim como as áreas de pequeno e grande comércio. Vemos zonas residenciais e muitas pensões residenciais. Quem passou algum dia por aqui não reconhece a localidade. A televisão mostra imagens cheias de gente e de confusão. A tranquilidade aparente desloca-nos da realidade.
Estamos em Santa Clara, o município fronteiriço, que, por razões diversas, aparece regularmente nas manchetes noticiosas. É a principal porta para a Namíbia a partir do Cunene. Onde param os zungueiros? E os kínguilos, maioritariamente homens que dominam o câmbio informal? Não se vêm “ngandulos”, igualmente conhecidos por “matocheiros”, os \"comissionistas\" ou ainda \"micheiros\". Em bom português, são intermediários disponíveis para todo o tipo de serviço. À primeira vista, diminuíram as cantinas dos Mamadús. Os verdadeiros entrepostos dos amigos Youssoufs, originários de qualquer ponto de África, desapareceram das redondezas. A resposta-chave para a surpreendente metamorfose assenta na designada “Operação Resgate”.
A rua principal mudou de aspecto desde o início da Operação. “Acabaram as aglomerações de gente. Os kínguilos agora ficam ali atrás.” Solícito, João Miguel, funcionário público, aponta para um lugar remoto. Perto da fronteira, fazemos paragem obrigatória na cancela que nos separa dos edifícios que ocupam uma superfície considerável. Aqui funcionam a Administração Geral Tributária (AGT), a Polícia Fiscal, os Serviços de Migra-
ção e Estrangeiros e a Polícia de Guarda Fronteira, à qual compete garantir a inviolabilidade dos marcos.
A província do Cunene partilha 460 quilómetros de fronteira com a vizinha Namíbia. Desses, 340 são terrestres e 120 fluviais. Diariamente, regista-se um intenso movimento de saída e entrada de cidadãos nos dois sentidos, através dos postos fronteiriços de Santa Clara, Calueque, Okalongo e Ruacaná.
Movimento fronteiriço
Este ano, um total de 198.662 cidadãos nacionais saíram do país a partir dos postos fronteiriços de Santa-Clara, Okalongo, Calueque e Ruacaná, na Província do Cu-nene, menos 79.986 do que em 2017.
Os números vêm expressos no Relatório de Balanço Anual do Serviço de Migração e Estrangeiro (SME) no Cunene. De acordo com os dados, 64.436 cidadãos nacionais usaram passaportes, 615, salvo-condutos e 133.611, passes de travessia, a partir dos postos fronteiriços de Santa-Clara, Okalongo, numa média de 600 pessoas por dia.
De acordo com o relatório de balanço do SME no Cunene, durante o ano, entraram no país, pela mesma via, 167.084 pessoas, menos 94.449 do
que em 2017. Deste número, 144.690 são de diversas nacionalidades. 40.266 usaram visto de turista, 204 de residentes e 444 vistos de trabalho.
Estes portadores de vistos tiveram como destino as províncias do Cunene, Huíla, Huambo, Benguela, Namibe, Lunda-Norte, Cuando-Cu-bango e Luanda.
Registou-se igualmente a entrada de 103.774 namibianos com passes de travessia.
Separados pela Conferência de Berlim
A Namíbia foi o primeiro país do mundo a suprimir a necessidade de visto de entrada no seu território para cidadãos angolanos. As formalidades migratórias são céleres dos dois lados. Ao contrário do tempo da guerra, de triste memória, Cunene tem saída. E entrada, desde que os procedimentos sejam rigorosamente feitos entre as 08h00 e as 17h00. Apesar do fuso horário da Namíbia, com uma hora a mais, as autoridades locais aceitam o horário de Angola. Os residentes num perímetro de 5 quilómetros usufruem de passe válido para 72 horas. É-lhes permitida circulação num raio de sessenta quilómetros.
Abundam pormenores interessantes. Há famílias divididas entre as fronteiras. “O pai pode viver na Namíbia e a mãe em Angola. Muitos angolanos preferem que os filhos estudem na Namíbia, por causa da Língua Inglesa. As crianças kuanyamas não zungam. São orgulhosas. Vão à escola”, afirma Tomás, jovem angolano de 30 anos. Não falava uma única palavra em Português, quando começou a trabalhar na fronteira. Suspende a entrevista, feita em território neutro, ao ouvir alguém gritar o seu nome.
Depois da Emigração, a estrada tem um cruzamento em transversal. A partir desse ponto, a condução faz-se em sentido contrário. Ou seja, da direita para a esquerda, para quem sai de Angola e da esquerda para a direita, para quem entra em território nacional. O carro fica na terra de ninguém. Entramos em Oshikango, território namibiano. As cidades namibianas mais próximas são Enhana, Rundu e Nkurenkuru. Pertinho daqui, passa o rio Okavango. Nova reportagem agendada para o futuro. Hoje estamos aqui. O assédio é grande. Afinal, os “matocheiros” ausentes de Santa Clara estão na Namíbia. Trata-se maioritariamente de cidadãos angolanos, residentes em Angola.
“Chegam para fazer biscates”, explica um ocasional companheiro de jornada. “Mãezinha, trocamos rands e dólares. Fazemos traduções, levamos aos médicos originais. Eles tratam tudo, tiram mioma nas mulheres. A mãe precisa de quê?”. O homem, enorme, vestido de calças brancas e camisola do Chelsea, oferece uma gama de serviços indistintos.
Quinito Kanhameni, o guia turístico de ocasião, interrompe diplomaticamente a sequência publicitária. Ga-rante que boa parte dos grandes armazéns aceita paga-
mentos em kwanzas. Em território namibiano, comunica-se principalmente em Kua-
nyama, língua transfronteiriça integrante do grupo étni-co-linguístico Oshiwambo. Em Angola, incluiu o Ovambadja e Ovavale. Atento, Quinito recomenda cuidados redobrados em relação à mochila. Às vezes, o azar acompanha os viajantes. Os intimidatórios relatos elucidam. Fala-se de roubos, assaltos violentos com uso de arma branca. Há agressões e raptos.
“Muitas pessoas são desviadas por supostos taxistas. Com sorte, deixam algum dinheiro para o transporte. O segredo é não responder a nada. Não abrir a boca. Quando se apercebem que somos estrangeiros”. Na verdade, Guidinha refere-se a não falantes das línguas lo-cais. A outra prima, surgida no corredor do movimentado armazém, confirma os riscos. Saúda sorrateiramente. Como se estivesse a fugir de um peri-go eminente.
“Chegámos ontem. Ficamos dois dias”. Elas fazem parte do lote de \"moambeiras\" que, desafiando a crise económica, especializaram-se em identificar potenciais negócios rentáveis em estabelecimentos namibianos.
Permanecemos no primeiro armazém, situado a sensivelmente duzentos metros do posto fronteiriço. Com os bolsos abarrotados de notas, o homem do Chelsea volta a insinuar-se. “A secção dos telemóveis é ali. As mobílias estão lá em cima. Conhecemos bons despachantes…”, aponta para o andar superior.
Conhecido por Camilo, nome de um dos principais empregados, o armazém sinaliza um ponto de encontro de angolanos. Misturam-se nos seus corredores sotaques de todo o país. Durante uma hora no seu interior, não vimos uma pessoa que seja a pagar as compras com outra moeda, além de kwanzas. Ou seja, os clientes namibianos são raríssimos. Os angolanos compram electro-domésticos, telemóveis, malas de viagem, mobílias, artigos para casa, produtos industriais, mas também quinquilharia. A esta altura, saem inúmeras árvores e enfeites de Natal. Os preços são taxados em dólares americanos ao câmbio do dia.
A compra, por exemplo, de uma pasta de viagem cotada em 35 dólares remete para o outro lado do armazém, onde inúmeros clientes angolanos esperam pelas respectivas mercadorias. A depender do tamanho do volume, uma carrinha transporta-as para a zona alfandegária. As poucas cadeiras não satisfazem a demanda. Não faz mal! Ninguém se verga ao cansaço. Distraídos a indagar, não sentimos passar os exactos vinte minutos. A persistente chamada em tom alto desperta a atenção. “Roguério, Roguério”, repete o homem em pronúncia inglesa. Mercadoria confirmada.
A espera não terminou. O empregado leva a mercadoria. A tal pasta, orçada em 35 dólares norte-americanos, equivale a 13.300 Kwanzas. Pouco dinheiro, realmente. Mas a “carga” não sai sem o correspondente manifesto. A recepção do documento emitido pela Autoridade Alfandegária da Namíbia consumiu aproximadamente 45 minutos. Quase o tempo que Reginalda, enfermeira do Hospital Geral de Ondjiva, aguarda pela arca de três cestos e pelo colchão.
“Aproveitei a folga para fazer compras. Paguei pela arca 56.600 kwanzas”. Em Ondjiva, o mesmo electro-doméstico custa acima de cem mil Kwanzas. “Incluindo o valor pago na nossa Alfândega, fica sempre mais barato”, acrescenta.
“Há sempre carros para levar a mercadoria até a casa. Deixamos os papéis e o número do telefone. Recebemos tudo no mesmo dia”, esclarece. A enfermeira é interrompida pelo Tomás, o “matocheiro”, aquele que estava na terra de ninguém. A esta altura contabiliza rendimentos de uns quantos “ngandulos”. Ele também agencia a enfermeira Reginalda. Quanto aos honorários, “dependem da conversa”. O sorriso de Tomás sugere uma jornada lucrativa.
O 10 de Dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos, é feriado na Namíbia. A data coincide com a celebração dos direitos da mulher na pátria de Sam Nujoma. A proximidade da Quadra Festiva e o pagamento da remuneração referente ao 13º mês fazem aumentar a clientela no vizinho do sul. E o homem do Chelsea volta a rondar a área. Desta vez, não apregoa nada. O olhar é expressivo. Desconfiamos que o dia não está a ser muito bom para ele. O Tomás corre para atender a chamada. Assunto resolvido. “Vou seguir a minha carga”, despede-se a enfermeira de Ondjiva.
A par de compras acessíveis, os angolanos procuram saúde na Namíbia. John, 34 anos, é um dos poucos intermediários namibianos que circula na fronteira. Clarifica que os cidadãos do seu país pagam 15 rands (225 kwanzas) nos hospitais públicos e os angolanos 60 (aproximadamente 900 kwanzas). Ainda assim, fica em conta.
“Nas clínicas privadas, os preços dependem da complicação, mas todos pagam valores iguais. O que conta é o dinheiro”, comenta o trabalhador informal, que prefere ser tratado por João. “Costumo acompanhar muitos angolanos”, afirma.
Limitamo-nos a acompanhar as movimentações nos armazéns lotados de gente para comprar, pesquisar e comparar preços. Como a ocasião apura o engenho, o pequeno comércio prospera. Zungueiras angolanas vendem ameixas e laranjas pela metade do preço cobrado em Ondjiva. Para isso, não precisamos de pagar impostos.
O sol de Santa Clara engana. Os passos apressados em direcção aos portões indicam a passagem do tempo. Em menos de duas horas, a fronteira estará encerrada. Algum desavisado lança lixo para o chão. Angolano, claro! John ou João, como preferirmos, recolhe a sujeira que deposita no cesto ignorado pelo apressado viajante. O prazo expirou. Faltam estórias para ilustrar o quotidiano na zona fronteiriça. Contudo, as poucas horas deram a ver intensas movimentações. Factos interessantes. Fronteiras artificiais; de povos de dois países separados pela conferência de Berlim.
Pensar e Falar Angola