Afinal onde é o meu
lugar?
Por onde
andava eu há 40 anos atrás???
O dia 25 de
abril de 74 apanhou-me a sair da adolescência, numa idade em que já era uma
observadora atenta do que me rodeava, sensível aos ideais ligados à igualdade e
à fraternidade multicoloridas, conscientemente contra o “orgulhosamente sós” de
Salazar, mas ainda saudavelmente ingénua e cheia de sonhos.
Como estava
no hemisfério sul, só tive conhecimento da revolução no final do dia seguinte,
muito em segredo antes do jantar, deixando-me de orelhas em pé, pois a
referência segredada foi segredada entre adultos apenas. Pareceu-me nascer ali
um entusiasmo cauteloso, que me fez ansiar pelos jornais do dia seguinte, para
finalmente ver Spínola como grande herói, com fotografias de página inteira,
remetendo Otelo para segundo plano e Salgueiro Maia para terceiríssimo e
desvalorizado plano. Nessa altura não me apercebi disso, logicamente.
Incomodava-me aquele monóculo e o pingalim que segurava na mão, desconfiando da
personagem, que tais objectos transportava, parecendo-me mais um tirano do
seculo XIX, do que um revolucionário do século XX. Aquele monóculo nada tinha
de modernidade. O modelo era Che.
Nos
dias que se seguiram, o monóculo virou moda e era simulado de forma irreverente
por caricas de coca-cola, para posarmos nas fotografias de grupos de amigos
adolescentes, crentes num futuro risonho e livre. O poster de Che Guevara
colado nas paredes dos quartos, os discos clandestinos de Zeca Afonso, a ideia
de um líder chamado Agostinho Neto, deixou de ser utopia e passou a ser tema de
conversa constante, num processo de descoberta e aprendizagem rápida da
democracia e da liberdade. Eu vivia com o BO (bairro operário) mesmo ao lado,
suscitando muita conversa clandestina que o meu espirito curioso retinha, nos
anos de adolescente. Contavam-se histórias… o cartão de visita da miscigenação
urbana não colhia no meu lado, impulsionando diversas questões que eu ia
organizando na cabeça, e que todos omitiam os esclarecimentos de que era ávida.
Nada mais
foi igual, a sociedade de Luanda entrou em sobressalto progressivo. A ideia
doce e romântica de uma independência desejada e de um salto de liberdade para
um futuro de todos, rapidamente se transformou numa contagem decrescente para a
guerra civil, que tal como todas as guerras são injustas, sangrentas,
desumanas, mutiladoras e trágicas. A descolonização rápida, necessária, mas
pouco eficiente e nada assertiva, gerou meio milhão de retornados e refugiados,
seres humanos desprotegidos, incapazes de se organizar e lutar pela sua
permanência nos territórios independentes, que apenas tiveram como alternativa,
a saída.
Percebi, com
16 anos, que não tinha autonomia para tomar decisões sobre a minha vida e para
a minha vida. Descobri que devia obedecer às decisões dos meus pais, mesmo que
me desagradassem profundamente. Constatei que não era suficientemente crescida
para viver sozinha na terra que me viu nascer, nem era suficientemente criança,
para tudo me passar ao lado.
Após poucos
meses do 25 de abril, anunciaram-me que tinha duas horas para me despedir de
Luanda, pois provavelmente iria ter um bilhete de ida para Lisboa, sem volta. Já
passava das 18h30m.
Não fui
ouvida, nem achada!
Trinta
minutos foram para comprar dois agasalhos, um casaco de lã azul e uma camisola
roxa, que por mero acaso e sorte havia numa loja junto ao local onde vivia. O
resto foi a despedida. Despedi-me de lágrimas nos olhos, e vários nós na
garganta, de uma cidade linda. Ao longo desse tempo, revi alguns momentos das
minhas vivências frágeis e ingénuas, que farão eternamente parte de mim, retive
no olhar sítios da minha terra de nascimento e de coração. Faltou-me o tempo
para me despedir de amigos, para anotar contactos, para criar novas pontes de
ligação para o futuro. Nem queria acreditar que não voltaria, que poderia nunca
mais ver e estar com os meus amigos. Algo desconfortável e cada vez mais
aterrador se instalou na minha racionalidade, tornando-me incapaz de tudo,
excepto obedecer.
Naquela
noite, cresci de repente vários anos. Passei a ser adulta da noite para o dia
seguinte, lutando entre duas lógicas, a minha lógica dos afectos e a lógica da
descolonização, indiscutivelmente necessária, quanto a mim. Eu já entendia a
democracia como meta maior, já tinha observado a digestão difícil de várias
revoltas e era sensível ao conflito implícito da acção colonizadora.
As luzes
reflectidas na água negra da baía de Luanda, assumiram formas irregulares e
esborratadas, resultantes da luz e das minhas lágrimas silenciosas, que teimavam
correr-me pela face enquanto viajava no banco de trás do automóvel do meu pai
em direcção ao aeroporto. Conferi cada rua, cada avenida, cada cruzamento…
olhei pela última vez os sítios onde me encontrava com os meus amigos.
No dia
seguinte, passei a ser refugiada em terra europeia. A coincidência entre duas
realidades: a minha realidade geográfica intersectada com a minha realidade
afectiva, temperada pela revolta da não decisão. Entrei num mundo sem fortes
referências para mim, onde decorria uma revolução com alguns contratempos pelo
meio - eu, cheia de contradições e com novas e maiores responsabilidades, um
pouco entregue a mim mesma. O rótulo de retornada e não progressista também se
colou a mim em algumas situações menos felizes na integração na sociedade
portuguesa. A desconfiança sobre a minha caderneta escolar que testemunhava
bons resultados académicos, a desconfiança sobre os meus princípios e valores,
a falta de solidariedade entre colegas de escola, e a ausência de camaradagem
extra escola, premiaram-me em diversos momentos ao longo de 74/75, nas terras
“do choupal até à lapa”.
A ruptura
violenta e traumática nos meus afectos, converteu-me em jovem adulta
silenciosa, precoce e introvertida, com as sensibilidades adormecidas, ou
talvez anestesiadas, como forma de me proteger das novas realidades. A
racionalidade e as emoções, combateram-se num duelo entre uma aprendizagem
ideológica e as orientações do politicamente correcto, potencializada através
da pintura realizada em horas de ócio no Museu Machado de Castro, ao longo de
alguns meses.
Alguns
amigos foram reencontrados quase 30 anos depois, outros permanecerão sempre no
fio da navalha, entre o estar ou não estar vivos. Quem me desenhou o destino era graficamente inábil como
tenho confirmado ao longo da vida.
Costumo
dizer que a minha vida afectiva é um puzzle incompleto, onde faltam algumas
peças. Das peças recuperadas, nem todas me trouxeram alegria, pois os anos
passaram, e as peças tornaram-se menos luminosas, com contornos desligados da
minha história e por vezes contrários às minhas convicções.
Os anos
passaram, não voltei mais.
Passei a ser
assumidamente uma sem terra, ou contrariando e ampliando até ao absurdo, também
poderei dizer que passei a ser uma cidadã do mundo, o que em termos práticos dá
no mesmo. A lei diz que tenho nacionalidade portuguesa, o meu BI também, e eu
continuo a sentir-me sem raízes nos vários locais onde já vivi, neste país. Vivo
de sensações armazenadas, entre sombras de jacarandás e aromas de acácias rubras,
desconfiguradas em terra fria de bravos navegadores da cauda da europa e uma
vontade férrea de inovar com vistas para o futuro.
Sou
portuguesa sem ter nascido aqui e não sou angolana porque não vivo lá. Afinal
sou de onde? Um paradoxo desta coisa de se ser eternamente de algum lugar, sem
efectivamente o ser, mas que nos preenche os sonhos de todas as noites - a
crise de identidade que muitos angolanos sentem e vivem, provavelmente
entenderá o verdadeiro e profundo significado destas palavras rabiscadas a
partir do 25 de abril de 74.
Afinal onde é o meu lugar?
In” Ensaios de escrita, um
projecto sempre adiado”
Anabela Quelhas (aprendente e
anotadora de espaços)
(sem acordo ortográfico)
Pensar e Falar Angola
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