Antes
de entrar no tema propriamente dito que aqui me traz, convém fazer algumas definições,
pois é um hábito meu fazer sempre isso para não haver equívocos.
O
que é arte africana? O que é arte colonial?
Responder
à primeira questão é quase impossível à luz dos nossos conceitos ditos
ocidentais. Sabendo nós que a Arte – por cá, claro – tem a ver com técnica, e
só depois com fruição do belo, e, neste nosso tempo tão atribulado, com
denúncias, combate político e mesmo revolução, como é que podemos definir o que
é Arte Africana se em África os objetivos da Arte são outros muito diferentes?
Mas, na verdade, esta descoberta, feita nos anos 30 por um historiador de arte
judeu chamado Carl Einstein, fez evoluir a arte dita ocidental de uma maneira
inesquecível. Sem o cubismo, como é que a arte ocidental teria evoluído? Ora o
cubismo, como antes o fauvismo, tem exatamente origem na constatação de que se
os africanos tinham chegado à esquematização quase absoluta, foi porque a arte
que eles faziam era parte das suas tarefas do quotidiano, como comer e
trabalhar, por motivos mágico-religiosos essencialmente. Como diz José António
Braga Fernandes Dias, em África, «Os critérios de autenticidade vulgarmente
adotados assentam no princípio do uso tribal; quer dizer, um objeto é
considerado autêntico desde que executado por um artista de uma sociedade
tradicional, destinado ao uso funcional ou ritual nessa sociedade (nunca para
venda) e efetivamente usado». Porque o fazem desde sempre, foram simplificando
as formas, chegando à estilização máxima. Juan Gris, Picasso, Bracque, Léger e
Joan Miró perceberam os estudos de Carl Einstein, que, em grandes linhas, no
plano teórico, discute as categorias de "pictórico" e
"escultórico", e, independentemente do meio artístico empregado,
ressalta as características da arte negra, as soluções espaciais na escultura
encontradas pelos artistas africanos e a sua similitude com as invenções dos
artistas cubistas na pintura. Os cubistas captaram que a figuração dos objetos,
mediante signos, produzia diversos sentidos, assim como perceberam a
combinação, transformação e reformulação de signos e de grupos de signos na
escultura africana.
Segundo
Elena O’Neill, em A escrita atuante de
Carl Einstein, «Einstein adjudicou à arte e à linguagem a tarefa de
libertar o homem de imagens ossificadas e modos de pensar rígidos. Em Einstein,
a realidade se constrói e se transforma sem cessar: ele defende uma arte na
qual o artista modifica a realidade e não está preso a um excesso de
racionalização, normalização ou a uma linguagem aprendida; acredita numa arte
engajada na transformação social, na qual a forma reconfigura a subjetividade.»
Na
sua tese de profissionalização, A escultura
africana e as suas máscaras – A arte moderna e plataformas culturais de José de
Guimarães, a artista plástica Helena Justino confirma, de outros modos,
este sentido: «Na África tradicional, a arte está intimamente ligada ao
quotidiano, à vida, à energia, às ideias e às coisas, em suma, à explicação do
ser e da existência, e reflete, como é óbvio, uma caraterística muito peculiar
para os europeus, “O indivíduo não perturba o equilíbrio, a ordem social e a
cultura deixada pelos antepassados”, sendo as figuras esculpidas como que
intermediários entre esses antepassados e o homem atual».
Quanto
à arte dita colonial, é igualmente difícil de definir, porque o que a impõe é a
ausência de conceitos, portanto é pela negativa. Na verdade, não tem nada de
africano, é uma importação, embora não se trate de um mero transplante da
Europa, pois há realmente uma fusão de elementos europeus e africanos. Uma
outra questão não menos pertinente diz respeito ao olhar crítico que é dirigido
à produção plástica realizada em Angola por europeus ou segundo linhas
europeias, o que complica ainda mais a questão.
Como
assinala Teresa Matos Pereira na sua tese de doutoramento Uma Travessia da Colonialidade - Intervisualidades da Pintura, Portugal
e Angola, «A criação de um conjunto de imagens de África em geral e Angola
em particular e a sua disseminação por inúmeros suportes, conheceu nas artes
plásticas, fotografia e cinema, veículos de relevo. Estas imagens, cuja
materialização contou com uma linguagem naturalista como poderoso alicerce,
conjugaram um vocabulário que reúne o real – transfigurado pela observação de
quem pinta, desenha ou fotografa - e a ideologia que direciona e condiciona o
olhar de quem produz e de quem vê. Assim, não será de estranhar que o discurso
produzido à volta da pintura de paisagem, de costumes, etc., provenientes e/ou
acerca de África, realce sistematicamente uma simulação do real, com traços de
veracidade indiscutível, ainda que as imagens repitam invariavelmente as mesmas
formas estereotipadas e fórmulas compositivas».
Primeiro,
na década de 30 do século XX, eram as paisagens paradisíacas, tipo chapa
modelo, com imbondeiros gigantes, que o Dr. António Videira até erigiu como um
dos símbolos de Angola, vegetação frondosa e céus em fogo – são célebres as
queimadas que o Neves e Sousa vendia ao metro – panoramas com rios ao fundo e
barcos a vogar mansamente, com cores delicodoces tipo tecnicolor, que fizeram o
must até à década de 60. De certo
modo, tudo isto era o prolongamento natural do que já fazia o pintor português
Miguel Ângelo Lupi (1826-1883) quando passou brevemente por Luanda entre 1851 e
1853, como Contador na Junta da Fazenda da Província de Angola, deixando aí
algumas obras que, segundo Diogo de Macedo, «levaram sumiço e dos quais não há
notícia» Porém, seguindo uma modalidade de pintura de género desenvolvida pela
geração romântica, que aposta na captação do pitoresco e do exotismo dos
costumes, realiza um conjunto de desenhos onde são representados os costumes
locais, vistas paisagísticas e monumentos que atestam a presença portuguesa
neste território africano.
São
vários os termos com que podemos classificar este tipo de arte, nomeadamente
“arte colonial”, “arte indígena”, “arte negra” ou “arte gentílica”, talhados de
modo a designar um conjunto de manifestações de índole plástica (de onde
sobressai a escultura), traçadas como expressões da primitividade. Reiteram, na
sua maioria, uma noção de genuinidade e integridade, dependentes de um
isolamento e estagnação temporal que as remete para expressões de uma
a-temporalidade e a-historicidade, colhendo preferencialmente o pitoresco,
típico, artístico e histórico. Mas arte africana é que não é, a não ser
geograficamente falando.
Em
Portugal, uma das primeiras referências às expressões artísticas africanas,
assente numa visão modernista, surge curiosamente pelas palavras de António
Ferro, na célebre conferência A Idade do
Jazz Band, proferida no Brasil e mais tarde publicada na revista Athena, na década de 20.
António
Ferro irá para Angola, em 1918, como oficial miliciano, sendo posteriormente
nomeado ajudante de campo de Filomeno da Câmara, quando este ali esteve
como governador-geral, em 1929, depois
de ter sido elemento principal da revolta que foi chamada dos Fifis, em 1927, por
ter sido em conluio com o escritor Fidelino Figueiredo. Este último, no
prefácio à sua obra, Viagem à Volta das
Ditaduras lembra a apreensão do autor enquanto lhe pedia «informações e
conselhos com a preocupação embaraçada de todos os que embarcam, pela primeira
vez, para essas paragens mal afamadas onde a imaginação mistura, numa vaga
noção de desconforto, coisas terríveis com outras grotescas: antropófagos,
leões, febres e macacos».
Foi
exatamente em 1960 que se realizou em Luanda o primeiro salão de artes
plásticas, o I Salão de Independentes, que apresentou 81 trabalhos de pintura,
escultura e desenho de 9 expositores: António Tavares, Apolinário, Benúdia,
Fernando Reis, Fernando Rodrigues, Henrique Abranches, Henrique Guerra, Daniel
Saraiva e Tito Vitorino, na sua maioria figurativos, mas já aparecem trabalhos
com laivos de modernidade, e todos realçando a pujança da natureza angolana,
como era da praxe.
Há
dois meses, quando falava numa das minhas tertúlias sobre a descolonização de
Angola, uma das assistentes pôs-me a seguinte pergunta: «Nunca sentiste em
Angola que os pretos também eram racistas? Várias pessoas têm-me dito isso».
A
minha resposta foi pronta: «Como é que podiam os pretos ser racistas naquele
tempo, se eles não existiam.» Sim, isso mesmo. Não existiam.
A
terra era dos colonos, os empregos eram dos colonos, as casas eram dos colonos.
Os angolanos pretos, fora algumas exceções (poucas) serviam os brancos e já era
bom. E tinham de arranjar dinheiro para pagar o chamado imposto de palhota, que
foi uma maneira de os obrigar mesmo a trabalhar.
Foco
esta questão para ajudar a compreender o conceito de pintura colonial. Porque,
devido exatamente a este pressuposto, a verdade é que não havia nem podia haver
pintura angolana. Para isso, todos os cidadãos tinham de ter uma existência
real, e isso é que não havia. Como é que, se não existiam, podiam ser racistas?
Está claro que hoje, que, de algum modo, alguns mandam no País, a situação é
outra, há realmente racismo, mas, claro, errar é humano.
A
instauração e implementação dos sistemas coloniais encontraram-se comprometidas
com a criação de uma colonialidade visual, materializada através de
fotografias, mapas, desenhos, pinturas, ou a recolha de coleções de “arte” e
“artesanato”. O conjunto destes objetos e imagens concorre para a estruturação
de uma cultura visual que desempenhou um papel de relevo no âmbito da
apresentação, descrição e justificação de uma ordem colonial.
A
imagem (desenhada, pintada, impressa, fotografada…) surgia como um dos meios
preferenciais de divulgação de ideias e conceitos que informam as
representações e as práticas coloniais, servindo-se de processos específicos de
seleção, exclusão ou enfatismo e colaborando ou comprovando a criação de
identidades, sejam de género, “raciais”, “tribais”, “étnicas”, nacionais, etc.
.
Nos
anos 40 e 50 há vários apelos em Lisboa para os artistas portugueses se
inspirarem no chamado Ultramar e até foi realizado um Cruzeiro ao Ultramar a
eles dirigido. Foram poucos os que corresponderam: apenas Jorge Barradas, Fausto
Sampaio e Cristiano Cruz. Para além destes, houve ainda os casos de Lino
António, Dórdio Gomes, ou Abel Manta que esporadicamente realizaram algumas
obras (sobretudo encomendadas para exposições internacionais), onde são
visíveis referências aos territórios coloniais através de alegorias ou figuras
e paisagens estilizadas, que conhecem uma divulgação nas páginas da imprensa,
como por exemplo alguns desenhos de Bernardo Marques. Na sua maior parte nunca
visitaram nenhuma colónia, mas faziam os trabalhos a partir de fotografias.
Tenho para mim que essa é que a verdadeira pintura colonial.
É
mesta altura que Eduardo Malta, que chegou a ser conservador do Museu Nacional
de Arte Contemporânea, em Lisboa, surge como um dos exemplos representativos de
um conservadorismo estético e alinhamento ideológico-político, que vê na
perpetuação de um naturalismo de raiz académica, a probidade da criação
artística – ainda que com mais ou menos patine, com mais ou menos simulacros de
modernismo – e a resposta cabal aos desígnios de simbolização do poder
instituído, menosprezando, pelo contrário, a arte moderna das vanguardas, ao
considerá-las uma forma de denegação das raízes greco-latinas. Ele fará escola
para uma série de artistas que se vão dedicar aos temas coloniais e executará
várias séries de desenhos focando figuras e temas ligados às colónias.
Outros
se lhe seguirão, em Angola, como Alípio Brandão, cuja filha, Ema Brandão, ali
fará uma carreira interessante como escultora em madeira, Domingos Teixeira
Lopes, pai do Gil e do Hilário Teixeira Lopes, que, todos os anos, de Dezembro
a Abril, passava por Luanda, apresentando em Maio uma exposição dos seus
trabalhos, que vendia totalmente, e Estevão Soares, que fez igualmente
incursões a Angola, igualmente com êxito.
Haverá ainda que
referir ainda artistas como Álvaro Canelas, pintor de costumes populares dentro
de uma herança naturalista, que, à semelhança de muitos artistas da sua
geração, realiza uma experiência parisiense, vida boémia e aventureira do que resultou,
do ponto de vista da criação artística, numa produção pictórica e gráfica
irregulares, mas que lhe valeu a passagem por África (Moçambique, África
Equatorial Francesa e Angola) e por Timor, Preto Pacheco, que trabalhou em
Angola de 1964 a 1975, impondo-se com uma pintura naturalista muito à maneira
de Henrique Medina e como retratista oficioso, e até Marcelino Vespeira passará
por Angola muito fugidiamente, o suficiente para fazer uma muito interessante
capa do livro de Castro Soromenho, Viragem,
que, com A Chaga e Terra Morta compõem a trilogia Camaxilo, servindo-se de um grafismo
sígnico e de manchas informais influenciado marcadamente pela imagética
africana. Segundo Teresa Matos Pereira, na sua tese já referida, «Tendo
viajado pelos territórios sob domínio colonial português, ou aí residentes,
este grupo produziu um conjunto de imagens que mesclam realidades, mitos e
estereótipos. Destinadas essencialmente a um público burguês, as suas obras
transferem para cenários africanos ou asiáticos as modalidades da pintura
europeia, incidindo na cena de género, figura humana, paisagem, ou temáticas
animalistas, impregnadas de um naturalismo caprichoso, que oscila entre o
decorativismo e as pretensões etnográficas e documentais. Estes artistas irão
celebrar uma África de raízes rurais e “tradicionais”, ignorando muitas vezes
os sinais de modernização, com vista a materializar na pintura, uma imagem
pitoresca e exótica dos costumes, das pessoas, da fauna, flora e da paisagem. A
par destas linhas temáticas, encontramos igualmente uma outra, que segue a via
da pintura de história onde as batalhas entre africanos e europeus, a
celebração de datas históricas ou a ação desenvolvida pelos primeiros
governadores, surgem como modalidades de afirmação da superioridade europeia e
do seu domínio, destacando-se, algumas obras da autoria de Martins Barata».
É
em 1944 que aparecem os relatos de Henrique Galvão nos seus álbuns Outras Terras Outras Gentes e Ronda d‘África, retomando a narrativa de
viagem através do território angolano, convergindo no mesmo registo discursivo
de Maria Archer, - uma figura muito interessante como feminista e escritora
colonial, - mas com a vantagem de numa segunda edição serem acompanhados de uma
abundante iconografia que compreende fotografias de Elmano Cunha e Costa,
conjugadas com desenhos e pinturas de artistas como Eduardo Malta, Fausto
Sampaio, Roberto Silva, José de Moura, António Ayres, Rui Filipe, Martins
Barata ou Neves e Sousa. A comparação da primeira edição – relativamente
modesta quanto à utilização da imagem e situando-se numa proximidade com os
relatos editados no século anterior – com a edição distribuída em fascículos
entre os anos de 1944 e 1948, é elucidativa quanto à importância crescente da
imagem como meio de comunicação capaz de transmitir informação e mensagens de
modo instantâneo e eficaz.
Já
na década de sessenta será ainda de referir a presença em Angola do escultor
madeirense Henrique Pereira, deportado para Luanda por ser militante do PCP, e
de Dorindo de Carvalho, cuja atividade como gráfico será marcante os quais
desenvolvem um conjunto de linguagens, onde se cruzam imagens de traços
naturalistas marcados pela exploração da paisagem, do retrato e dos costumes,
numa linha folclorista que manteve uma proximidade com o domínio da etnografia,
- assumindo a obra, por vezes, pretensões documentais – e algumas expressões
que se irão aproximar do neorrealismo pela dimensão sociológica que procuram
atingir.
Com
toda esta movimentação, será natural que, em Março de 1960, o Grupo Desportivo
da Cuca, a primeira fábrica cervejeira de Angola, realize, sob a égide do
empresário Manuel Vinhas, que assinou a apresentação do catálogo, uma Exposição
de Pintura Moderna, que foi o núcleo inicial da sua coleção em Angola e que
viria a doar ao Museu de Angola. Esta mostra integrava nomes maiores da pintura
portuguesa como Pomar, Fernando Azevedo, Menez, Nikias Skapinakis, Marcelino
Vespeira, Nuno Siqueiros, Alice Jorge, Artur Bual e Mário Eloy.
Estava
preparado o terreno para outros voos. O primeiro foi o resultado de uma
conversa casual entre o artista plástico Cruzeiro Seixas, que então trabalhava
em Luanda como delegado de propaganda médica, e a então estudante de Belas
Artes Helena Justino, a Exposição Geral de Artes Plásticas, conhecida como Angola-63,
realizada em Agosto, no Museu de Angola, e que marcou inesperadamente uma etapa
na situação artística que em Angola era ainda muito incipiente.
Esperando
que aparecessem duas dúzias de pintores de domingo, mais um punhado de jovens,
como era habitual noutras iniciativas culturais, a surpresa foi geral, pois
houve 51 candidatos, que apresentaram 200 trabalhos. E participaram também
figuras já minimamente consagradas a nível local, como Carlos Ferreira, Carlos
Fernandes, Cruzeiro Seixas, Eleutério Sanches, Henrique Abranches, Henrique
Pereira, Artur Taquelim e a sua mulher, Angélica, Maria Manta, Mário Araújo,
Neves e Sousa, Roberto Silva, Rocha de Sousa, Vaz de Carvalho, Vítor Teixeira
(Viteix) e, não esquecer, o Luandino Vieira, que ainda continua a fazer as
capas dos livros da sua editora, a NÓS, o que diz bem da importância que lhe
foi dada.
A
exposição, organizada sob a égide da Sociedade Cultural de Angola, que esteve
patente no Museu de Angola, teve o patrocínio do Grupo Desportivo da Cuca, teve
a Fundação Calouste Gulbenkian como o outro grande patrocinador, pois até o seu
presidente, Dr. Azeredo Perdigão dignou-se presidir à inauguração e foi um
motivo para entrega de subsídios e promessa de outros, nomeadamente o apoio à
criação em Luanda de uma escola de belas-artes, que fosse, simultaneamente,
incubadora de artistas novos e instrumento de evolução dos que já eram
artistas.
A
repercussão foi a vários títulos notável, sendo que até o exigente jornalista
Roby Amorim, que viria a ser expulso pouco depois, por motivos políticos, lhe
dedicou um artigo de análise exaustiva, no jornal O Comércio, concluindo que «o certame denuncia a existência de
número suficiente de valores para justificar iniciativas de maior envergadura».
Essa era, aliás, a sua intenção e a sua justificação, como bem frisaram os
organizadores, em que, além do núcleo inicial, Cruzeiro Seixas e Helena
Justino, se juntaram a Denise Toussaint, Graça Neto de Miranda, Mário António e
Bobela Mota. O conhecido poeta Mário António dirá, por seu turno, na sua Carta de Angola, para a revista Colóquio, que a mostra foi
surpreendente, pelo nível patenteado, superior ao que a ocasional frequência
das exposições abertas ao público em Luanda, deixaria supor.
O
I Salão de Arte Moderna da Cidade de Luanda aparecerá, em 1967, como corolário
de toda esta movimentação anterior. A necessidade que se fazia sentir de uma
atividade artística mais consentânea com os novos tempos e até as premências
mais imediatas da presença portuguesa em Angola exigiam isso.
Por
isso, em 1967, a Câmara Municipal de Luanda promove a realização do I Salão de
Arte Moderna da Cidade de Luanda, com a colaboração da Sociedade Nacional de
Belas Artes de Lisboa e do Núcleo de Arte de Lourenço Marques. No fundo, era o
que se poderia dizer um Salão de Arte à maneira europeia, pois as exigências de
rigor eram as mesmas e mesmos os parâmetros, assim como os cânones. No núcleo
inicial foi fundamental a presença do Engº. Aníbal Fernandes, conhecido como um
dos melhores tradutores do francês em Portugal, do Arq. Troufa Real, autor dos
prédios mais emblemáticos de Angola como o Palácio da Justiça de Luanda e da
Universidade de Cabinda, e do sociólogo José Rodrigues, que tinha sido
professor numa universidade belga.
O
júri do IV Salão de Arte Moderna da Cidade de Luanda, em 1970, constituído por
Adriano Gusmão, José Troufa Real, Luís Jardim e José Manuel da Nóbrega, decidiu
admitir por unanimidade 64 obras. De 27 artistas, eram angolanos apenas o
António Ole, Cabral Duarte, Carlos Barradas, Duarte Ferreira e Gracinda
Candeias, sendo que o Carlos Fernandes, um nome incontornável da pop art,
também residia em Luanda. Da Metrópole, como então se dizia, participaram nomes
como Gil Teixeira Lopes, Graça Antunes, Ilda Reis, João Vieira, Luís Gonçalves,
Mário Varela, Man, Manuel Baptista, Miguel Arruda, Nuno Siqueira, Pires Vieira,
Rocha de Sousa e Sérgio Pinhão, que levaram à linda capital angolana um
achegamento de modernidade bastante interessante naquele momento.
O
Júri de Premiação do V Salão foi constituído por Hélder Silva Moura, José
Manuel da Nóbrega, Luís Jardim, Troufa Real, e como representante da
“Metrópole”, para dar credibilidade, foi convidado o crítico de arte Rui Mário
Gonçalves. Havia júris de seleção em Luanda, que aceitou 19 peças, em Lisboa,
na Sociedade Nacional de Belas Artes, que aceitou 45, sendo que o de Lourenço
Marques recusou por unanimidade os 9 concorrentes.
De
vários modos, toda esta atividade se cruza com a minha própria, naturalmente.
Umas iniciativas levam às outras. Exatamente, em 1969, eu estarei ligado à
fundação do Círculo Universitário de Cinema de Luanda, o que me leva mais tarde
a fazer crítica de cinema no vespertino Diário
de Luanda, para onde entrarei como redator efetivo em 1971.
No
ano anterior integrei a redação da revista de cultura e espetáculos Noite e Dia, da Neográfica, que
pertencia ao Grupo da Cuca, do Manuel Vinhas. Uma noite sonhei em fazer um
salão de novíssimos à maneira de Lisboa. Apresentei a ideia ao coordenador da
redação, que por sua vez a apresentou ao Vinhas. No dia seguinte estava a fazer
o projeto e depois foi realizá-lo. Foi entusiasmante. Em Junho de 1971 foi
inaugurado, nos salões do Palácio do Comércio. O primeiro quadro que se vendeu
foi da Helena Trindade, que foi até há pouco tempo a conservadora do Museu da
Música de Lisboa, ao Raul Solnado, que estava na altura em Luanda a apresentar,
com a Io Apoloni, O vison voador.
Os
participantes eram todos jovens e na sua maior parte angolanos: Carlos Ferrão, Eduardo
Dias, Costa Araújo, Filipe Henriques, Duarte Ferreira, Carlos Barradas, António
Santiago, António Trindade, Rui Garção, Gui, João Serra, Álvaro, Maria José
Furtado, Helena Trindade, Pombinho, Travanca da Costa. De uma maneira geral, as
participações primavam por uma frescura real, registando-se uma vontade de
estar up-to-date, na onda em que o
mundo ocidental mergulhava no momento. De vários modos, a maior parte dos
trabalhos apresentados poderia ser mostrada em Londres ou Paris, as capitais
culturais de então, sem qualquer rebuço.
Na
verdade, como já disse, era um salão à maneira de Lisboa, da Europa, a África
era só o local geográfico. O artista plástico português Luís Jardim, que
trabalhava no Museu de Angola e que assinou a apresentação do catálogo,
salientou perentoriamente que esta exposição «É uma pesquisa e não a
codificação das regras da pintura do passado. Situa-se na linha de evolução que
parte de Cézanne, Duchamp, Fontana, Wesselmann, Rosenquist, Rauschenberg e
Vasarely». E acrescentará: «A arte do nosso tempo interessa-se pelo homem, e
pela sua situação no mundo. Dirige-se aos homens de boa fé e solicita-lhes a
sua participação definitiva. Esta exposição propõe um diálogo direto entre os
jovens artistas angolanos e o público. A arte é um facto social. Saibamos inteirar-nos
da sua significação, da sua importância na cultura de Angola.
Por
várias vezes Cruzeiro Seixas levantou algumas questões respeitantes ao
desenvolvimento de uma arte angolana que englobe o diálogo entre um domínio das
expressões autóctones e da expressão plástica, segundo moldes da academia
europeia. Num primeiro momento é abordada a pertinência de uma aprendizagem de
moldes académicos no contexto de uma arte angolana, que desta maneira
transformar-se-ia numa pálida imitação que não responde às questões intrínsecas
à sociedade que a produz. Esta ambiguidade, a que se acrescenta uma debilidade
quanto a um conhecimento aprofundado do sistema de representação clássico,
conduz, na sua perspetiva, a graves equívocos que inviabilizam o
desenvolvimento de uma identidade artística. Como contrapartida, defende que os
artistas deveriam voltar-se para um fundo popular e genuíno, aquilo que designa
por «arte naïf» como fonte de referências estruturantes de uma arte baseada em
valores endógenos e integrada num contexto (social e cultural) específico, que
assim se concretiza num plano de identidade não só individual, como coletiva.
Assim, a propósito da obra de alguns pintores que desenvolvem uma pintura de
moldes naturalistas, pontuada pelo retrato, pela paisagem ou pelo apontamento
etnográfico, como Manuel Castelo, Roberto Silva ou Mário Araújo, Cruzeiro
Seixas afirma categoricamente: «Esses pintores, aliás como outros do mesmo
estofo, só poderiam fazer obra válida se, abandonando os cânones académicos se
integrassem numa arte «naif», a única que lhes permitiria uma visão plástica
pessoal e, naturalmente, autêntica. (…) o equívoco é patente, pois não
possuindo uma aprendizagem académica profunda, eliminaram qualquer
possibilidade de pintura (académica) ―a sério‖. (...) Sendo embora africanos,
nunca se encontraram no mesmo caminho da África!»
E
conclui, «A atitude «naif», de resto, é aquela que reputo mais capaz de
devolver aos pintores de Angola, neste momento, uma visão genuína da sua
própria terra, fugindo assim aos estereótipos académicos, de matriz europeia.
De outro modo continuar-se-á no equívoco de servir um prato requentadíssimo de
que cada vez mais raros ou menos expressivos provarão»
De
algum modo, tem razão o escritor angolano Luís Mascarenhas Gaivão, quando diz:
«A identidade angolana traduz na expressão plástica as suas raízes mergulhadas
maioritariamente nas etnias bantu, mas também em outras que compõem o puzzle
nacional. O colonialismo, sobretudo durante o século XX, produziu o apagamento
das culturas nativas. As línguas foram proibidas e as manifestações culturais
entraram em categorias de subalternidade, e “arte selvagem” ou “arte primitiva”
eram conceitos que o colonizador criava sobre aquilo que desconhecia. O
colonialismo suporta-se construindo uma imagem distorcida do “outro”
colonizado, incutindo-lhe inferioridade: o preconceito, o estereótipo foram
armas eficazes deste procedimento. E a África, perante o colonizador europeu,
ficou “parada no tempo”, como ele próprio programara. Mas a África tinha outra
visão da natureza, da vida e da arte, e, ao acordar, vem reencontrando as
raízes. Neste texto pretendo trazer reflexões em torno desta história angolana,
por um prisma menos vulgar: as travessias plásticas que molduram a construção
permanente da angolanidade, onde, volto a mencionar, cabem as culturas bantu,
não-bantu e portuguesa.»
Outra
opinião tem o colecionador e galerista angolano Vítor Pinto da Fonseca, diretor
de três organizações dedicadas ao colecionismo e comércio de arte em Lisboa - a
VPF Cream Art, quase clássica, a Plataforma Revólver, de tendência mista, e a
Rock Art, de vanguarda e para situações de provocação – que alega que, para ele,
«não havia arte africana, nem europeia, nem americana, nem portuguesa, claro,
porque a arte é universal e é por aí que temos de caminhar no futuro», embora
uma boa parte dos seus artistas sejam africanos, como Tiago Borges e Gustavo
Sumpta, entre outros.
Como
tudo, embora esta seja uma opinião muito respeitável, é relativa. Mas que lança
o debate, lança, sim senhor, e pode agora ser o momento de pôr outras coisas a
claro.
Por
exemplo, até que ponto podem ser considerados como africanos artistas de origem
europeia que só nasceram por acidente em África e, por outro lado, cidadãos de
origem africana que por acaso vieram nascer na Europa? O que é que define
africanidade? E valerá a pena fazer esta pergunta num momento em que a
globalização está a homogeneizar tudo e se está a caminhar para uma crescente
universalização?
De
qualquer maneira, vale a pena lembrar uma afirmação bastante conhecida e
justamente considerada: a arte, quanto mais genuína, portanto quanto mais
expressão autêntica de uma região ou de um país, mais universal será.
Dizia
recentemente Cristina Pratas Cruzeiro que «Boa parte da arte atualmente
produzida, também em Portugal, é apátrida e representa exatamente o espaço
indefinido que ocupa, muito embora os artistas não o sejam e continuem
vinculados a um país demasiado pequeno, não no que respeita ao território mas
no que respeita às iniciativas e atividades culturais e artísticas. Não basta
por isso a ambição de expor ocasionalmente no estrangeiro nem a pretensão
sumária de organizar exposições por “pátria” ou “nação”, modelo duvidoso que
por regra propõe uma homogeneização que atualmente não existe nem se pode
pretender como proposta de uma condição global do país ou do mundo».
De
vários modos isto aplica-se, ainda com mais razão, ao que se está a fazer a
nível de artes plásticas nos vários países africanos de expressão portuguesa,
se bem que o seu estádio de desenvolvimento tenha outras circunstâncias e
determinantes.
Fiquemo-nos
por aqui. Como devem ter percebido, embora tenha prometido fazer definições,
acabei por andar à volta delas, mas não dei nenhuma, pois estas questões são
mais complexas, não cabem em espartilhos. Depois de tudo isto, sabe bem ver o
que o historiador de arte angolano Adriano Mixinge, que tem tido um papel muito
importante na identificação e dinâmica da arte angolana, diz: «Um ambiente trepidante
e libertário parece ter-se apoderado do melhor e do mais polémico da Arte
Contemporânea angolana que se vai fazendo, nas suas mais diferentes
manifestações: de Dog Murras a Lulendo, passando por Paulo Flores, Gabriel
Tchiema até ao Buraka Som Sistema, na música. De Orlando Fortunato ou Maria
João Nganga, no cinema. António Ole, Miguel Petchkowsky, Franck Lundangi,
Yonamine Miguel, Helga Gamboa, Van, Chikukuango Cuxima Zwa, Osvaldo Fonseca,
Álvaro Macieira e Nástio Mosquito, nas artes visuais e plásticas: todos eles
estão na vanguarda de algumas das mais interessantes propostas estéticas e
experimentações do momento».
Por
isso, conclui que o que resultará destes pressupostos, «num mundo cada vez mais
globalizado, a reinvenção das iconografias da Angolanidade o saberemos, com
certeza e propriedade mais tarde. A celebração da origem, da travessia e da
ubiquidade talvez seja a melhor estratégia na redefinição do lugar que a
cultura angolana ocupa no contexto africano e internacional, mas vai ser necessário
modernizar a gestão das instituições culturais, de forma a permitir que na
renegociação identitária, simbólica e comercial dos produtos culturais
angolanos, no mundo de hoje, sejamos tão vendedores, como já somos consumidores
dos produtos culturais de outros».
Visto
de Portugal, e atendendo ao que por aqui vamos constatando e conhecendo, eu
expendi há três anos o seguinte comentário sobre o estado atual da arte
angolana: «O grande nome de arte angolana é indiscutivelmente António Ole, com
um percurso laboriosa e persistentemente conseguido e senhor de uma obra
consistente como criador artístico. Em Portugal é representado desde há dois
anos pela Galeria 111, que também trabalha com o reputado Francisco Vidal, de
origem cabo-verdiana.
Na
década de 80 foi a vez de Viteix se apresentar com grande êxito em Lisboa, mas
a sua morte prematura cortou-lhe cerce os voos de internacionalização, embora
continue a ser em Angola considerado como um mestre.
O
escultor António Magina e os pintores Ana Silva e Zan foram, nos últimos anos,
presença constante em galerias portuguesas assim como Dília Fraguito, Gustavo
Sumpta, Yonamine, Kiluanje Liberdade, Osvaldo da Fonseca e António Alonso,
todos em franca ascensão, não devendo esquecermo-nos de Gracinda Candeias, uma
artista já consagrada, e Arlette Marques, com uma carreira discreta mas
segura».
RODRIGUES
VAZ
Comunicação
lida no dia 17 de Maio de 2017, na Universidade Nova, em Lisboa
Nota
– No final do Powerpoint apresento, como curiosidade, uma série de cromos que
eram distribuídos, nos anos 40, aos clientes da Sociedade Industrial de Tabacos
de Angola, de cariz acentuadamente erótico e alguns mesmo de pornografia
pedófila. Antes deles está, também como curiosidade, a reprodução de uma das
obras plásticas de Agostinho Neto, feita quando estava escondido num
apartamento das Avenidas Novas, em Lisboa. Quando em 2002 a apresentei à sua
viúva, Eugénia Neto, ela ameaçou que me processaria se eu a publicasse,
alegando que o seu aparecimento seria para denegrir o presidente Neto como
alcoólico. Nada mais errado. Nitidamente, e até pela data em que foi feita,
este trabalho é nitidamente uma ilustração do poema que António Jacinto tinha
apresentado anteriormente, o Poema da
Alienação.
Óleo
de Agostinho Neto
Nus
do Paula
os nossos agradecimentos ao autor
Pensar e Falar Angola