A independência tardia e tão recente, ocorreu num contexto histórico que trouxe maiores complicações a um espaço recortado por uma impressionante diversidade de etnias, línguas e tradições.
Nesse panorama de graves contradições, a actividade literária procurou encontrar um lugar e participou nos projectos que tinham como norte construir uma nação e institucionalizar um estado. Ao contrário do que se poderia pensar, o empenho na procura dessa utopia não uniformizou o reportório.
Podemos verificar, na obra dos escritores contemporâneos, muitas maneiras de responder à experiência de viver e de se ocupar dessa parte de um continente marcado por pluralidades e contradições.
Algumas das mais criativas estão na obra de Ruy Duarte de Carvalho, em que Vou lá visitar pastores é um óptimo exemplo.
Numa tentativa de síntese, vou definir esse livro como um relato profundo, baseado num longo trabalho de pesquisa sobre os Mucubais, povo pastoril que vive na região sul de Angola e que tem sido objecto das pesquisas antropológicas realizadas por Ruy Duarte de Carvalho desde o início dos anos 90.
No texto, estão os dados que a etnografia ajuda a seleccionar, sistematizar e classificar e, com isso, revelar lógicas que não são as que conhecemos, decifrando um universo de percepções, sentimentos, causalidades e relações que definem um outro modo de estar no mundo.
O livro está dividido em quatro partes – Memórias, colocações / Viagens e encontros: figuras / Etnografias, torrentes / Decifrações, desafios - um post-scriptum e um glossário, além de ilustrações que participam no esforço do autor para nos apresentar esse outro mundo.
O título da própria obra e de cada uma de suas partes antecipa a inquietação confirmada a cada página desse que pode ser visto, afinal, como um livro não catalogável. Acabada a leitura, continuo sem saber exactamente como definir esse livro que alguém classifica de antropologia mas não ficaria mal localizado em literatura.
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<---Segunda parte do texto --->
É certo que temos um ensaio antropológico rigoroso e responsável, contudo, detectamos a preocupação de alguém que pretende mais que descrever o outro. Desses pastores que têm sido foco da sua atenção, com resultados publicados em vários textos, a narrativa tenta chegar mais perto, num movimento de aproximação, no entanto, diferente daquele que comummente é a base dos documentos produzidos pelas ciências sociais. A energia da linguagem poética que emerge em muitas passagens sugere outras dimensões para que este não deixe de ser um relato de viagens.
No início, somos informados de que a obra nasce de um acaso: uma viagem pelo Sul do país, acompanhado por um amigo jornalista que, entretanto, atrasa-se e não pode partir com ele; a possibilidade de sua vinda leva o autor a gravar umas cassetes com dados que seriam úteis no contacto do amigo com esse universo a ser visitado. Mais tarde, da transcrição dessas fitas resultaria o livro, cuja origem está, portanto, no propósito de orientar a travessia por terrenos já muito percorridos por Ruy Duarte. Como ele próprio diz: “(...) Fui-lhe, por isso, deixando cassetes com a gravação do que contava dizer-lhe pelo caminho. Era a maneira de ajudá-lo, mesmo assim, a alargar o contacto com o que buscava. Não chegou a aparecer e mais tarde transcrevi essas cassetes. Divulgo agora os salvados, são a viagem do texto”.
Preparando o amigo para o percurso, Ruy Duarte de Carvalho constrói um espaço de interlocução que nos envolve. A partir dali ficamos a saber da importância do gado para esses povos, da estrutura que define as suas relações de parentesco, da simbologia do fogo, ou melhor, dos fogos na sua vida, das relações com o sagrado, da relevância da mobilidade na dinâmica cultural que compõe a sua identidade, do lugar que ocupam ou deveriam ocupar na constituição da identidade angolana. Para nós, ocidentais e/ou ocidentalizados, tudo pode parecer novo e o aviso dirigido ao Felipe, o amigo atrasado, deve ser considerado: “(...) vai ser preciso até cumprir um caminho bem físico e bem concreto, quanto às suas referências, para que possas ver-te introduzido no quadro, no enquadramento desse presente que vais pretender identificar como o dos “outros” e acabará inevitavelmente , espero, por marcar também o teu. Vais viver situações novas e uma conveniente disponibilidade poderá colocar-te, se o permitires, não só perante o desconhecido que a prática dos outros te há-de revelar, mas também face àquele que a tua experiência e a tua sensibilidade vieram a colocar à consciência que é a tua, tributária ela mesma dos tempos e das idades que te tiver sido dado cumprir.”
A complexidade desse universo e da própria tarefa de apresentá-lo sem reduzi-lo ao exótico exige do autor uma atenção maior e uma extraordinária habilidade. Trata-se de colocar em discussão alguns dos problemas que são cruciais no quadro dos países africanos, entre os quais a relação entre o património cultural convencionalmente chamado de tradição e as pontas da modernidade que ali têm presença. Conhecemos pouco ou nada dos temas e a adaptação às formas que o autor utiliza para reflectir sobre esse universo é condição para que, tal como o Felipe, alarguemos o contacto com esse mundo abordado. Como a tarefa é complexa, o autor recusa facilitações, requerendo do leitor uma atenção especial para a organização dos argumentos, para a ênfase descritiva e para o jogo de sentidos que é próprio do texto literário. Isso explica que a leitura seja, em algumas passagens, morosa, justificando ainda a necessidade de voltar atrás para rever o que talvez tenha passado de modo displicente. Colocando-se como mediador não faz do seu um livro de divulgação, tão a gosto dos esquemas do mercado que a tudo pode transformar em curiosidade.
Pensar e Falar Angola
2 comentários:
É um livro extraordinário, que eu recomendo vivamente a todos que queiram conhecer a cultura do povo Kuvale. Leiam e sintam o ambiente do árido sudoeste angolano, que o povo mucubal conhece como ninguém. Com esses pastores teremos - se quisermos - muito a aprender sobre o sentido profundo da Vida...
Excelente livro, de excelente escritor. De resto, o único antropólogo angolano que continuou a fazer investigação regular em Angola após a independência e por sua própria conta.
Um bj, Carranca, pela ideia de falares aqui deste livro.
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