Despertei a meio da noite com a rouca algazarra das rãs.
O apartamento onde resido situa-se mesmo defronte ao Largo do Quinaxixe, num prédio em fase de transição para o capitalismo, ou seja, com a fachada ainda suja e amargurada, a cair aos pedaços, mas muitos apartamentos já inteiramente recuperados pela nova burguesia. As traseiras dão para uma lagoa obstinada.
Nos anos 50 habitava nestas águas uma quianda poderosa.
As pessoas deixavam-lhe ofertas nos cruzeiros dos caminhos, comida, algum dinheiro, que os colonos pobres, recém-chegados da metrópole, roubavam ao entardecer.
Aquando da construção do prédio os engenheiros responsáveis pela obra optaram por drenar a lagoa, substituindo-a por um amplo pátio interior.
Após a independência, porém, as águas ressurgiram com renovado vigor. Devoraram tudo. Já vi uma carrinha amarela – dessas escolares, que fazem parte da mitologia americana, e não sei por que diabo em determinada altura surgiram também nas ruas de Luanda -, vi uma carrinha assim ser engolida em poucos meses pela água escura, capim alto e canavial, os nenúfares indómitos.
Os habitantes miseráveis dos andares superiores, aqueles que ainda resistem a vendê-los, lançam para a lagoa toda a sorte de dejectos, desde "a malcheirosa escória de estar vivo",( …) móveis velhos, colchões, garrafas vazias, ou botijas de gás. Tudo isto a lagoa aceita. Por ela deslizam ratos gigantescos, anfíbios, com membranas interdigitais, segundo me garantiu o Professo, um velho do 4º andar (…), matemático na reforma, marxista serôdio e tenaz, secretário de um tal Partido (...).O Professor dedica quase todas as horas do dia, e suspeito que também da noite, sentado na varanda, a estudar a exótica fauna da lagoa.
Uma ocasião mostrou-me um pequena caderno de capa preta cheio de caprichosos desenhos, a lápis e tinta-da-china, alguns coloridos a aguarela, de aves, lagartixas, morcegos e ratazanas. Reparando melhor dei-me conta de que eram, vários deles, animais improváveis, e outros mitológicos.
Por exemplo, o que primeiro me pareceu uma lagartixa tinha pequenas asas membranosas encolhidas contra o corpo. Um pássaro de peito rubro, bico forte, mostrava dentes afiados. Mais adiante havia o desenho minucioso de uma sereia, aparentemente morta e, logo na página seguinte, uma aguarela impressionante, mostrando o mesmo animal dissecado, e a forma como a cauda se inseria com inequívoca lógica no sistema muscular.
Volta e meia desaparece um menino na lagoa. Diz-se que a sereia o levou. Há-de ressurgir horas depois, desorientado, mudo de espanto, a pele ainda a reflectir o fulgor da quianda, próximo de uma qualquer fonte de água.
Despertei, pois, a meio da noite, no ar que fremia com a ansiedade das rãs. Levantei-me, passei pela cozinha, abri a porta e fui á varanda espreitar. As rãs machos lutavam pela fêmeas. Deviam ser milhares, muitos milhares, num frenético bacanal. A escuridão agitava-se, lá em baixo, á medida que o tumulto crescia. O que eu via era uma espécie de noite invertida, cristais de luz cintilando, apagando-se, minúsculas explosões negras abrindo a água. Subitamente dei-me conta de uma silhueta feminina, desenhando-se ténue, exactamente a meio da lagoa. (…)
Agualusa, José Eduardo in "As mulheres do meu pai"
Pensar e Falar Angola
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