por Helena Magalhães
Após um mais longo do que o habitual período de estiagem a época das chuvas fez finalmente a sua entrada em Luanda. Eram frequentes os comentários a propósito, em particular na imprensa escrita, advogando que o “feitiço” da seca era uma lotaria, no caso a correr bem para as obras do governo, em particular as do governo provincial de Luanda estariam a ganhar com isso, mas a poder dar para o torto se a chuva não começasse a pingar porque o povo dos muceques, a maioria da população da cidade, já andava inquieto, a sufocar poeira e a esquadrinhar os possíveis autores do tal feitiço.
Feitiços e feiticeiros aqui é coisa séria. Mesmo em plena capital, volta não volta lá vêm ao de cima, fora o que é abafado, notícias de violência sobre crianças ou velhos acusados de feitiçaria. O caso das seitas, descobertas e desmanteladas, que em Luanda mantinham prisioneiras cerca de quarenta crianças “feiticeiras” indignou a opinião pública, e veio pôr a nu uma realidade pressentida, sabida, mas não assumida. Desde então incidentes relacionados com alegadas práticas, e acusações, de feitiçaria têm vindo a ser noticiados. As elevadas taxas de analfabetismo favorecem o campear do obscurantismo e da crendice, as más condições de vida e a penúria completam o ramalhete, independentemente dos matizes da matriz cultural africana, mais telúrica. A explicação mais desempoeirada, porém, ouvi-a de um jovem de muceque, motorista de profissão, pouco escolarizado, mas informado: “ é gente muito ignorante e muito mais oportunista, porque só acusam os que lhes convêm e não se podem defender; é sempre a velha que tem casa própria que é feiticeira, ou a criança que é filho doutro matrimónio”. É o viver no limiar, ou abaixo, da pobreza.
Bom, mas as chuvas lá acabram por cair em Luanda. Chuva grossa, redonda, que chega sem quase aviso e se despenha em fragores dum céu que de repente se põe antracite e o ar fica espesso e esbranquiçado. Num repente muda tudo, só o calor parece aumentar. E num repente há enxurradas inimagináveis, as ruas passam a riachos, alguns caudalosos, muita gente corre à procura abrigo, o banho de encharcar é garantido, outros descalçam-se e fazem-se ao piso, pernas dentro d’água. Os carros, pneus afundados, deslizam a espadeirar água e lama enquanto vão galgando os improvisados rios que arrastam terra e detritos num cenário incendiado de raios e coriscos. Tudo estrondeia, e os eflúvios da terra molhada enrolam-se no ar quente.
Esta é a versão “secos e molhados” romântica de quem assiste, bem protegido, às chuvas em Luanda. Bastam umas horas, poucas, e no apuramento de resultados há inundações, casas e carros danificados, árvores tombadas, vias interrompidas. Nos bairros populares, mais muceque menos muceque, os danos, conhecidos e divulgados, dão conta de habitações destruídas, quando não mortes e afogamentos, ruas (??) intransitáveis, prejuizos elevados, enfim, durante dias os charcos, a lama e o lixo desfeito hão-de tomar conta da vida daquela gente. Até à próxima chuvada. Que por especial desígnio da natureza há-de fazer-se chegada tempos depois. Acho que ninguém quer imaginar o que seria de Luanda se chovesse dias a fio….
Nas províncias, especialmente no centro sul, a chuva cai sem parar, as cidades ficam inundadas e desmoronadas, desaparecem aldeias, rebentam diques e pontes, morre gente, talvez muita (?), chegam à capital ecos da desgraça, há milhares de desalojados, irrompem as campanhas de solidariedade e de recolha de fundos, alimentos e roupa, anunciam-se obras de reconstrução, prometem-se obras de prevenção. São mobilizados homens e máquinas, há gente do governo em penosa digressão, os esforços propalados são de monta.
Há quem cientificamente reclame consequências das alterações climatéricas. O maldito aquecimento global pisa sem dó os mais pobres que, por o serem, são mais vulneráveis. A poluição global descarrega em cima deles as nuvens mais viciadas. A indiferença global deixa-os entregues à sorte, ou ao azar.. A ganância global rouba-lhes os projectos de infra-estrutura e de protecção. A corrupção global atira-lhes com materiais obsoletos de construção e come-lhes o tutano da produção. A terra rica não “enrica” quem lá trabuca e não manduca. A sacrossanta globalização toca a todos, sobretudo no perder, mas uns são mais atreitos do que outros. E que me conste o “ao deus dará” não vem da matriz cultural africana; eles é mais as forças da natureza e dos espíritos, dos ancestrais. Herdaram, os poderosos, com sofreguidão e despudor, a sageza judaico-cristã do “venha-a-nós”. Haja paz!
Luanda, 7 abril 2009.
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