Sexta-feira, Setembro 25, 2009
O LEGADO DE NETO
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Por MARTINHO JÚNIOR
Setembro está a ser um mês de conteúdos ricos para Angola, uma espécie de balanço que se faz da história, da cultura, da vida, tornando-se cada vez mais sensíveis as correntes filosóficas que os angolanos têm em presença, um pouco como vai acontecendo aliás em todo o mundo: quer queiram quer não é sempre um balanço geral, mesmo que as questões que se ponham sejam de cariz local.
Em Angola tem uma vantagem: tudo está a ser balanceado sem se perder de vista o filão de poesia feita dum misto de paixão, de entusiasmo, de esperança, de nacionalismo e de solidariedade, de quanta dádiva, desafiando a responsabilidade de cada um e a colectiva… quer queiram quer não e isso também por causa do legado de Neto!...
Dirão que perante a crise o que é humano é cada vez mais se levantarem as interrogações, filosofar, medir e balancear o que foi feito, o que se está a fazer, como foi feto, como é feito, como deve ser feito, quando e porquê…
Pouco a pouco em Angola as interrogações vão sendo colocadas (tem havido apesar de tudo alguma possibilidade nesse sentido) e entre elas também aquelas que se prendem ao estado, ao poder, às elites deste país, bem como em relação às tendências que se vão desenhando, as suas perspectivas, os seus enredos, os ciclos que se geram muitas das vezes com envolvências dentro e fora das fronteiras…
Alguns manifestam um elevado grau de consciência, sublinhando o respeito para com o movimento de libertação e, como estão vivos, o respeito para com o seu sentido histórico, que transparece no seu comportamento e na sua atitude, desde logo para consigo próprio, para depois se aprofundar para com a sociedade.
A esses preocupa fundamentalmente a situação humana, colocando o homem, o ambiente e a natureza na prioridade de todas as atenções, por isso cultivam a dignidade, são incorruptíveis, modestos e valem sempre e apenas pelo último acto que praticam em obediência à sua formação, à sua consciência.
Outros, não passam da afirmação da mentalidade corrente, aproveitando da lógica em vigor: uns são arrogantes, outros ostentam seu poder e riqueza, outros ainda escondem-se timidamente para melhor poder usufruir o que foi “conquistado” com compromissos de toda a ordem mesmo aqueles que obrigam a vender por vezes mãe e pátria; esses são os medíocres, mas são os que marcam a cadência dos tempos actuais… são as primeiras vítimas mentais do sistema “kuduru e cabeça mole”…
A esses, cada vez mais poderosos, preocupa fundamentalmente o dinheiro, o lucro, o poder, como garantir o exercício continuado dos privilégios alcançados por vezes a golpes de tanta vilania, a única coisa que realmente pretendem a prazo tão dilatado quanto o possível e por isso vão preparando o “the day after” para os filhos que se lhes seguirão.
Os grandes mestres dessa ordem, no momento em que todo o mundo a começar pelos Estados Unidos, começam a pedir contas aos banqueiros cuja filosofia feita cobiça ilimitada está a atirar a humanidade para o caos, atraem até alguns daqueles que se sentam no Bilderberg e noutros “think tank” da opressão, para se instalarem como os grandes salvadores da pátria de Agostinho Neto!
Em Luanda, por detrás de cada torre que se ergue, está quase sempre um banco que esconde as piores mazelas do mundo e pior de tudo, agarrado a cada um deles, estão as figuras que vão compondo pelo menos uma parte muito substantiva das novas elites!
Poderão alegar que há outras tendências para além dessa dicotomia, todavia a minha observação redunda da análise de duas lógicas: aqueles que são pelo capitalismo neo liberal (que detêm agora o controlo do estado), que tão bem usam as instituições como cobertura e os outros que optam pela alternativa, cada vez mais identificada com o legado de Neto, a maior parte deles já fora das instituições!
Os jornais de Setembro têm espelhado bem essa dicotomia que cada vez se vai tornando como o vento do sudoeste que transporta grátis o oxigénio que Luanda tanto precisa todas as tardes quando o sol aperta mais, cada vez mais presente, cada vez mais evidente.
Tenho antes de mais uma posição de reserva que não quero aqui deixar de referir, em relação a muitos desses jornais:
Quem está por detrás deles?
Quem os financia, quem os alimenta, que pressões não têm cada um deles de satisfazer, vindos de quem?
São justas essas minhas reservas, pois na esmagadora maioria das intervenções verifica-se que a lógica capitalista dominante nunca é posta em causa, quando eu sou pela coragem crítica que está na raiz da sempre possível alternativa.
Tudo isso acontece por que em Setembro avalia-se sempre, quer-se queira, quer não, o legado de António Agostinho Neto.
No “Novo Jornal” de 11 de Setembro, edição nº 86, a filha do primeiro Presidente de Angola Irene Neto, em “dossier”, aceitou responder a uma entrevista do jornalista António de Freitas sobre a vida e a obra do seu pai e também sobre si própria.
Para mim, houve uma pergunta chave que o jornalista colocou sobre seu pai e Irene Neto respondeu de forma cuidadosa, inteligente, sóbria e muito substantiva.
Teve a ousadia o jornalista de perguntar:
“Qual o legado de Neto que tanto se fala?
Existe esse legado?”
Vale a pena transcrever na íntegra a resposta madura de Irene Neto:
O legado de Agostinho Neto é a independência, a cidadania angolana, o MPLA, a libertação da África Austral, o não alinhamento e a importância norteadora de resolver os problemas do povo.
E a SONANGOL que foi criada por um despacho seu e que foi igualmente convertida em concessionária pela Lei das Actividades Petrolíferas, em 1978.
Sabia que as bases do que são hoje o boom e a pujança económica de Angola foram lançadas por ele?
O seu legado é também o seu exemplo de homem íntegro, honesto e defensor do seu povo.
A sua mestria política e diplomática priorizou as soluções políticas e por isso mesmo estavam em curso contactos com a África do Sul, com os Estados Unidos, com o Zaire e com a UNITA visando o fim da guerra e a pacificação do país e da África Austral.
O seu estilo independente e defensor dos interesses nacionais foi sempre reforçado com a sua qualidade moral e visão estratégica.
Nunca confundiu a ajuda com a subserviência e nunca aceitou ser um serviçal de nenhuma potência.
O seu legado não é de riquezas porque o seu trabalho e inteligência foram sempre para a luta.
O que era seu foi investido na luta.
Não acumulou patrimónios nem privatizou haveres e activos do estado para seu benefício ou para benefício de seus filhos.
Não retirou benefícios nem vantagens das suas funções e dos poderes que lhe estavam investidos.
O seu legado é acima de tudo o seu exemplo de vida que mostra a importância da educação e da personalidade íntegra”.
Sobre si própria foi logo a seguir:
“Você esteve no governo e é agora deputada.
Foi por influência do nome do seu pai?”
Irene Neto salvaguardou:
“Sou angolana e constitucionalmente tenho os mesmos direitos e obrigações que qualquer cidadão angolano.
Não aceito ser discriminada por ser filha de quem sou.
Tenho um capital humano que me torna capaz de fazer e conceber.
O nome do meu pai demanda de mim um desempenho moral e humano muito elevado.
Ter um pai como ele foi, encoraja a lutar pelo bem de todos e não apenas de um grupo de pessoas”.
Em muitos que seguiram a saga do movimento de libertação, o legado de Neto, para lá da profundidade de sua poesia, não está apenas escrito, mas está sobretudo inscrito: ele existe na memória e na consciência daqueles que lhe foram e são fieis, que lhe vão ser fieis até ao fim, como uma cumplicidade indelével que ata a vida rebelde e recusa a mentalidade do que em Angola quantas vezes se torna fácil, disponível, fútil, o que quantas vezes nutre a mentira continuada, passa como é óbvio sempre ao lado da busca da verdade.
Para isso os fieis tiveram e têm de passar por duras provas:
- Renunciar às riquezas, mesmo que elas lhes tivessem passado dezenas, centenas de vezes, pelas suas próprias mãos.
- Renunciar a uma carreira, por que foi sendo cada vez mais dado espaço aos venais do templo e era impedido o acesso aos honestos, aos modestos, aos inteligentes, aos empenhados por inteiro e sem outros compromissos que não luta pela pátria, pela independência, pela solidariedade, pelo internacionalismo, pelo aprofundamento da democracia, pelo povo angolano e não por grupos de pressão, muitos dos quais estiveram por detrás da opressão e são causadores dos imensos sacrifícios que foram vividos ao longo das últimas décadas…
- Renunciar à lógica que impuseram paulatinamente a partir de 1985, por que a vida fruía e a vida era a verdadeira lógica, a sua barricada, a sua resistência, mesmo que isso por vezes tenha posto em causa a sua própria sobrevivência ou a de sua própria família.
- Passar pelas prisões por via de condenações injustas, mesmo que por aí se jogasse o destino da sociedade e dum estado afinal a ser alterado a partir dos seus alicerces, foi o mesmo acidente de percurso que por várias vezes viveu António Agostinho Neto, que viveu Fidel… e a esses a história os absolverá…
Antes de 1985 a cultura foi o respeito escrupuloso pelo estado, pelo património público, pelo que era do povo angolano e era preciso desde logo honrar, honrando a vida.
Depois de 1985, passou tudo a ser cada vez mais susceptível de negócio, a começar o que existia à mercê nos próprios mecanismos de poder (as “transformações” operadas por dentro da segurança, do interior e das forças armadas acabaram por se tornar num óptimo ingrediente).
A passagem para mãos privadas de bens, equipamentos e património que era do estado foi de tal ordem que quando as gloriosas FAPLA foram dissolvidas, recorde-se aquele poderoso exército que fez frente ao “apartheid” e aos seus sequazes, pouco sobrou para as novas FAA e em muitos sectores teve-se que adquirir tudo de novo nos termos que tinham a ver já com a nova lógica (Pierre Falcone não aparece por acaso, “caído dos céus aos trambolhões”).
Os fieis, aqueles que acima de tudo assumiram a cultura do antes de 1985, são assim, devotados ao povo angolano, por inteiro e até ao fim, fazendo sua a aspiração de Neto, uma qualidade que tudo indicia também fruir em Irene Neto, para lá dos laços de sangue, no âmbito dos laços insuspeitáveis, sublimados pela via da memória, da constância, da perseverança e sobretudo da consciência.
Hoje em época de crise, pode-se até aceitar condescendentemente muita coisa, por exemplo:
- Aceitar o sacrifício dos mortos que pavimentaram o chão e nos conduziram à identidade independente, soberana…
- Aceitar o rejuvenescimento dum país em canteiro de obras, por que quantas e quantas vezes não será aberta pela primeira vez uma estrada, um estádio, uma ponte, uma escola, um posto sanitário, um fontanário de água potável, uma casa, quando para trás existe um vazio imenso…
- Aceitar o trabalho humilde de sol a sol numa Angola em reconstrução e em reconciliação, por que durante tantas décadas as armas foram empunhadas, quando era cada vez mais premente empunhar a enxada, a ferramenta, conduzir o tractor…
- Será contudo justo aceitar desvarios, como as ilhas artificiais, os monumentos megalómanos, a urbanização visionária guardada nos segredos dos gabinetes quando necessário seria mobilizar tanta gente, gente do nosso povo, para a sua realização, aceitar a rotura “inexplicável” dos orçamentos?…
- Será justo manter “parcerias público – privadas” de cada vez mais duvidosa pureza, com programas opacos inibindo qualquer tipo e transparência e cada vez mais duvidoso sentido de oportunidade, como aqueles que se têm gerado a partir da SONANGOL?
- Será justo aceitar os cada vez maiores e mais evidentes desequilíbrios sociais, aceitar a corrupção, as cumplicidades, as venalidades, a ostentação, o que é feito na sombra quando se esconde da mão esquerda o que é feito com a mão direita?…
- É admissível assistir-se cada vez mais às “parcerias” daqueles que durante tantos anos instigaram Savimbi (é só fazer a leitura atenta dos “Jogos Africanos” de Jaime Nogueira Pinto) e agora estão empenhados em trazer cada vez mais desequilíbrios e injustiças sociais para o povo angolano, pela mão de alguns dos mais responsáveis do próprio aparelho de estado?
- É admissível a mentira continuada, o esvaziar das instituições aprontando-as para os negócios e só para os negócios, por vezes embrulhando as acções mais torpes no cativante papel celofane que advém do próprio movimento de libertação?
Nunca se poderá aceitar que o homem e a natureza deixem de merecer aquela prioridade que teve sempre no pensamento e acção de Agostinho Neto, o que deixou de ter aplicado desde que o capitalismo neo liberal foi sendo lenta mas inexoravelmente imposto tirando partido das manipulações injectadas gradualmente, inclusive pela via das sucessivas negociações, a partir de 1985.
Os banqueiros e todos os que lhes são subservientes no poder, não comandam a vida, em muitos casos comandam sobretudo a morte!...
Para os fieis não há “jogos africanos”, há povo angolano e povos africanos por inteiro!
Por isso muitos desses fieis, neste mês de Setembro que é um mês de poetas e também um mês para lá dos poetas, fazem ainda sua a muito legítima “aspiração” afinal tão bem inscrita no legado de Neto e tão oportuna para os tempos que correm:
Aspiração
Ainda o meu canto dolente
Setembro está a ser um mês de conteúdos ricos para Angola, uma espécie de balanço que se faz da história, da cultura, da vida, tornando-se cada vez mais sensíveis as correntes filosóficas que os angolanos têm em presença, um pouco como vai acontecendo aliás em todo o mundo: quer queiram quer não é sempre um balanço geral, mesmo que as questões que se ponham sejam de cariz local.
Em Angola tem uma vantagem: tudo está a ser balanceado sem se perder de vista o filão de poesia feita dum misto de paixão, de entusiasmo, de esperança, de nacionalismo e de solidariedade, de quanta dádiva, desafiando a responsabilidade de cada um e a colectiva… quer queiram quer não e isso também por causa do legado de Neto!...
Dirão que perante a crise o que é humano é cada vez mais se levantarem as interrogações, filosofar, medir e balancear o que foi feito, o que se está a fazer, como foi feto, como é feito, como deve ser feito, quando e porquê…
Pouco a pouco em Angola as interrogações vão sendo colocadas (tem havido apesar de tudo alguma possibilidade nesse sentido) e entre elas também aquelas que se prendem ao estado, ao poder, às elites deste país, bem como em relação às tendências que se vão desenhando, as suas perspectivas, os seus enredos, os ciclos que se geram muitas das vezes com envolvências dentro e fora das fronteiras…
Alguns manifestam um elevado grau de consciência, sublinhando o respeito para com o movimento de libertação e, como estão vivos, o respeito para com o seu sentido histórico, que transparece no seu comportamento e na sua atitude, desde logo para consigo próprio, para depois se aprofundar para com a sociedade.
A esses preocupa fundamentalmente a situação humana, colocando o homem, o ambiente e a natureza na prioridade de todas as atenções, por isso cultivam a dignidade, são incorruptíveis, modestos e valem sempre e apenas pelo último acto que praticam em obediência à sua formação, à sua consciência.
Outros, não passam da afirmação da mentalidade corrente, aproveitando da lógica em vigor: uns são arrogantes, outros ostentam seu poder e riqueza, outros ainda escondem-se timidamente para melhor poder usufruir o que foi “conquistado” com compromissos de toda a ordem mesmo aqueles que obrigam a vender por vezes mãe e pátria; esses são os medíocres, mas são os que marcam a cadência dos tempos actuais… são as primeiras vítimas mentais do sistema “kuduru e cabeça mole”…
A esses, cada vez mais poderosos, preocupa fundamentalmente o dinheiro, o lucro, o poder, como garantir o exercício continuado dos privilégios alcançados por vezes a golpes de tanta vilania, a única coisa que realmente pretendem a prazo tão dilatado quanto o possível e por isso vão preparando o “the day after” para os filhos que se lhes seguirão.
Os grandes mestres dessa ordem, no momento em que todo o mundo a começar pelos Estados Unidos, começam a pedir contas aos banqueiros cuja filosofia feita cobiça ilimitada está a atirar a humanidade para o caos, atraem até alguns daqueles que se sentam no Bilderberg e noutros “think tank” da opressão, para se instalarem como os grandes salvadores da pátria de Agostinho Neto!
Em Luanda, por detrás de cada torre que se ergue, está quase sempre um banco que esconde as piores mazelas do mundo e pior de tudo, agarrado a cada um deles, estão as figuras que vão compondo pelo menos uma parte muito substantiva das novas elites!
Poderão alegar que há outras tendências para além dessa dicotomia, todavia a minha observação redunda da análise de duas lógicas: aqueles que são pelo capitalismo neo liberal (que detêm agora o controlo do estado), que tão bem usam as instituições como cobertura e os outros que optam pela alternativa, cada vez mais identificada com o legado de Neto, a maior parte deles já fora das instituições!
Os jornais de Setembro têm espelhado bem essa dicotomia que cada vez se vai tornando como o vento do sudoeste que transporta grátis o oxigénio que Luanda tanto precisa todas as tardes quando o sol aperta mais, cada vez mais presente, cada vez mais evidente.
Tenho antes de mais uma posição de reserva que não quero aqui deixar de referir, em relação a muitos desses jornais:
Quem está por detrás deles?
Quem os financia, quem os alimenta, que pressões não têm cada um deles de satisfazer, vindos de quem?
São justas essas minhas reservas, pois na esmagadora maioria das intervenções verifica-se que a lógica capitalista dominante nunca é posta em causa, quando eu sou pela coragem crítica que está na raiz da sempre possível alternativa.
Tudo isso acontece por que em Setembro avalia-se sempre, quer-se queira, quer não, o legado de António Agostinho Neto.
No “Novo Jornal” de 11 de Setembro, edição nº 86, a filha do primeiro Presidente de Angola Irene Neto, em “dossier”, aceitou responder a uma entrevista do jornalista António de Freitas sobre a vida e a obra do seu pai e também sobre si própria.
Para mim, houve uma pergunta chave que o jornalista colocou sobre seu pai e Irene Neto respondeu de forma cuidadosa, inteligente, sóbria e muito substantiva.
Teve a ousadia o jornalista de perguntar:
“Qual o legado de Neto que tanto se fala?
Existe esse legado?”
Vale a pena transcrever na íntegra a resposta madura de Irene Neto:
O legado de Agostinho Neto é a independência, a cidadania angolana, o MPLA, a libertação da África Austral, o não alinhamento e a importância norteadora de resolver os problemas do povo.
E a SONANGOL que foi criada por um despacho seu e que foi igualmente convertida em concessionária pela Lei das Actividades Petrolíferas, em 1978.
Sabia que as bases do que são hoje o boom e a pujança económica de Angola foram lançadas por ele?
O seu legado é também o seu exemplo de homem íntegro, honesto e defensor do seu povo.
A sua mestria política e diplomática priorizou as soluções políticas e por isso mesmo estavam em curso contactos com a África do Sul, com os Estados Unidos, com o Zaire e com a UNITA visando o fim da guerra e a pacificação do país e da África Austral.
O seu estilo independente e defensor dos interesses nacionais foi sempre reforçado com a sua qualidade moral e visão estratégica.
Nunca confundiu a ajuda com a subserviência e nunca aceitou ser um serviçal de nenhuma potência.
O seu legado não é de riquezas porque o seu trabalho e inteligência foram sempre para a luta.
O que era seu foi investido na luta.
Não acumulou patrimónios nem privatizou haveres e activos do estado para seu benefício ou para benefício de seus filhos.
Não retirou benefícios nem vantagens das suas funções e dos poderes que lhe estavam investidos.
O seu legado é acima de tudo o seu exemplo de vida que mostra a importância da educação e da personalidade íntegra”.
Sobre si própria foi logo a seguir:
“Você esteve no governo e é agora deputada.
Foi por influência do nome do seu pai?”
Irene Neto salvaguardou:
“Sou angolana e constitucionalmente tenho os mesmos direitos e obrigações que qualquer cidadão angolano.
Não aceito ser discriminada por ser filha de quem sou.
Tenho um capital humano que me torna capaz de fazer e conceber.
O nome do meu pai demanda de mim um desempenho moral e humano muito elevado.
Ter um pai como ele foi, encoraja a lutar pelo bem de todos e não apenas de um grupo de pessoas”.
Em muitos que seguiram a saga do movimento de libertação, o legado de Neto, para lá da profundidade de sua poesia, não está apenas escrito, mas está sobretudo inscrito: ele existe na memória e na consciência daqueles que lhe foram e são fieis, que lhe vão ser fieis até ao fim, como uma cumplicidade indelével que ata a vida rebelde e recusa a mentalidade do que em Angola quantas vezes se torna fácil, disponível, fútil, o que quantas vezes nutre a mentira continuada, passa como é óbvio sempre ao lado da busca da verdade.
Para isso os fieis tiveram e têm de passar por duras provas:
- Renunciar às riquezas, mesmo que elas lhes tivessem passado dezenas, centenas de vezes, pelas suas próprias mãos.
- Renunciar a uma carreira, por que foi sendo cada vez mais dado espaço aos venais do templo e era impedido o acesso aos honestos, aos modestos, aos inteligentes, aos empenhados por inteiro e sem outros compromissos que não luta pela pátria, pela independência, pela solidariedade, pelo internacionalismo, pelo aprofundamento da democracia, pelo povo angolano e não por grupos de pressão, muitos dos quais estiveram por detrás da opressão e são causadores dos imensos sacrifícios que foram vividos ao longo das últimas décadas…
- Renunciar à lógica que impuseram paulatinamente a partir de 1985, por que a vida fruía e a vida era a verdadeira lógica, a sua barricada, a sua resistência, mesmo que isso por vezes tenha posto em causa a sua própria sobrevivência ou a de sua própria família.
- Passar pelas prisões por via de condenações injustas, mesmo que por aí se jogasse o destino da sociedade e dum estado afinal a ser alterado a partir dos seus alicerces, foi o mesmo acidente de percurso que por várias vezes viveu António Agostinho Neto, que viveu Fidel… e a esses a história os absolverá…
Antes de 1985 a cultura foi o respeito escrupuloso pelo estado, pelo património público, pelo que era do povo angolano e era preciso desde logo honrar, honrando a vida.
Depois de 1985, passou tudo a ser cada vez mais susceptível de negócio, a começar o que existia à mercê nos próprios mecanismos de poder (as “transformações” operadas por dentro da segurança, do interior e das forças armadas acabaram por se tornar num óptimo ingrediente).
A passagem para mãos privadas de bens, equipamentos e património que era do estado foi de tal ordem que quando as gloriosas FAPLA foram dissolvidas, recorde-se aquele poderoso exército que fez frente ao “apartheid” e aos seus sequazes, pouco sobrou para as novas FAA e em muitos sectores teve-se que adquirir tudo de novo nos termos que tinham a ver já com a nova lógica (Pierre Falcone não aparece por acaso, “caído dos céus aos trambolhões”).
Os fieis, aqueles que acima de tudo assumiram a cultura do antes de 1985, são assim, devotados ao povo angolano, por inteiro e até ao fim, fazendo sua a aspiração de Neto, uma qualidade que tudo indicia também fruir em Irene Neto, para lá dos laços de sangue, no âmbito dos laços insuspeitáveis, sublimados pela via da memória, da constância, da perseverança e sobretudo da consciência.
Hoje em época de crise, pode-se até aceitar condescendentemente muita coisa, por exemplo:
- Aceitar o sacrifício dos mortos que pavimentaram o chão e nos conduziram à identidade independente, soberana…
- Aceitar o rejuvenescimento dum país em canteiro de obras, por que quantas e quantas vezes não será aberta pela primeira vez uma estrada, um estádio, uma ponte, uma escola, um posto sanitário, um fontanário de água potável, uma casa, quando para trás existe um vazio imenso…
- Aceitar o trabalho humilde de sol a sol numa Angola em reconstrução e em reconciliação, por que durante tantas décadas as armas foram empunhadas, quando era cada vez mais premente empunhar a enxada, a ferramenta, conduzir o tractor…
- Será contudo justo aceitar desvarios, como as ilhas artificiais, os monumentos megalómanos, a urbanização visionária guardada nos segredos dos gabinetes quando necessário seria mobilizar tanta gente, gente do nosso povo, para a sua realização, aceitar a rotura “inexplicável” dos orçamentos?…
- Será justo manter “parcerias público – privadas” de cada vez mais duvidosa pureza, com programas opacos inibindo qualquer tipo e transparência e cada vez mais duvidoso sentido de oportunidade, como aqueles que se têm gerado a partir da SONANGOL?
- Será justo aceitar os cada vez maiores e mais evidentes desequilíbrios sociais, aceitar a corrupção, as cumplicidades, as venalidades, a ostentação, o que é feito na sombra quando se esconde da mão esquerda o que é feito com a mão direita?…
- É admissível assistir-se cada vez mais às “parcerias” daqueles que durante tantos anos instigaram Savimbi (é só fazer a leitura atenta dos “Jogos Africanos” de Jaime Nogueira Pinto) e agora estão empenhados em trazer cada vez mais desequilíbrios e injustiças sociais para o povo angolano, pela mão de alguns dos mais responsáveis do próprio aparelho de estado?
- É admissível a mentira continuada, o esvaziar das instituições aprontando-as para os negócios e só para os negócios, por vezes embrulhando as acções mais torpes no cativante papel celofane que advém do próprio movimento de libertação?
Nunca se poderá aceitar que o homem e a natureza deixem de merecer aquela prioridade que teve sempre no pensamento e acção de Agostinho Neto, o que deixou de ter aplicado desde que o capitalismo neo liberal foi sendo lenta mas inexoravelmente imposto tirando partido das manipulações injectadas gradualmente, inclusive pela via das sucessivas negociações, a partir de 1985.
Os banqueiros e todos os que lhes são subservientes no poder, não comandam a vida, em muitos casos comandam sobretudo a morte!...
Para os fieis não há “jogos africanos”, há povo angolano e povos africanos por inteiro!
Por isso muitos desses fieis, neste mês de Setembro que é um mês de poetas e também um mês para lá dos poetas, fazem ainda sua a muito legítima “aspiração” afinal tão bem inscrita no legado de Neto e tão oportuna para os tempos que correm:
Aspiração
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas
Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar
ainda os meus braços
ainda os meus olhos ainda os meus gritos
Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida
E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado
Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco
Ainda a minha vida
oferecida à Vida ainda o meu desejo
Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer
E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram:
ainda
O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.
.
(Sagrada Esperança)
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