quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Literatura, a História e o Testemunho

NARRAR A MEMÓRIA DO TRAUMA:
A LITERATURA DE TESTEMUNHO E O CASO OS CUS DE JUDAS*
* Artigo apresentado no IX Seminário Internacional em Letras - Relações dialógicas em língua e literatura, Unifra/2009


Rafael Nunes Ferreira
(Universidade Federal do Pampa - Unipampa)



INTRODUÇÃO

Catástrofe, memória e representação são signos intimamente relacionados dentro de uma vasta coletânea de obras literárias de cunho testemunhal nascida, sobretudo, a partir do acúmulo de episódios bélicos no século XX, que teve princípio com a I Guerra Mundial. Desde então, no mundo inteiro, muitos desses sobreviventes/testemunhas passaram a narrar a sua experiência por meio da ficcionalidade, sejam eles sobreviventes/testemunhas da Shoah , das ditaduras militares na América Latina ou das Guerras Coloniais Portuguesas ─ apenas para citar três momentos da extensa lista de catástrofes que provocaram rupturas e efeitos devastadores em centenas de milhares de pessoas. Trata-se de obras ficcionais que se inserem dentro da denominada literatura de testemunho.
A literatura de testemunho, segundo Seligmann-Silva (2003), trata-se de uma “nova abordagem da produção literária e artística” (SELIGMANN-SILA, 2003, p.07), não entendida apenas como representação de algo ou expressão de sentimentos. Refere-se, ainda, a um campo de estudos interdisciplinar, abrangendo, pois, áreas como a história, a psicanálise, a sociologia, a própria literatura, etc. Seligmann-Silva afirma que “a uma era de catástrofes corresponde um tempo de testemunhos” (SELIGMANN-SILVA, 2007, p.33). Nesse sentido, o século XX revelou-se um território sui generis para o surgimento dessa literatura testemunhal, que compreende o relato de uma experiência-limite vivida pelo escritor, onde é preciso muitas vezes recordar e esquecer.
No presente artigo, pretendemos analisar, à luz da teoria acerca da literatura de testemunho, a obra Os cus de Judas (1979), escrita pelo português António Lobo Antunes, pertencente a uma trilogia de guerra na qual o escritor retrata o período em que vivenciou a experiência da Guerra Colonial em Angola – anfiteatro primeiro da guerra entre portugueses e africanos –, durante os anos de 1971 a 1974, perfazendo 13 anos de sofrimento que causaram a morte de dezenas de milhares de pessoas, militares e civis.

A GUERRA COLONIAL

Entre a década de 1950 e início da década de 1960, inúmeras manifestações em prol da independência das colônias ultramarinas ganharam força, sobretudo, em três frentes: Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Em oposição a essas manifestações, o governo português, chefiado por António de Oliveira Salazar, fundado na mística imperial e buscando reforçar as ligações entre a Metrópole e as colônias , responde militar e paramilitarmente provocando inúmeros episódios de morticínio nas colônias portuguesas no Ultramar.
Nesse espaço de tensão, surgem os primeiros eventos violentos cujos efeitos serão irreversíveis: em 1961, ações de libertação culminam no confronto que resultou no massacre da Baixa do Cassange e no 04 de fevereiro – data que simbolizou o início da luta armada. Mais tarde, dão-se início as guerrilhas na Guiné-Bissau, em 1963, e Moçambique, em 1964. O governo salazarista, por sua vez, cria uma intervenção militar denominada “Para Angola e em força”, a qual prevê mobilização urgente, deslocamento significativo de soldados, atuação incisiva e uma resolução final em curto prazo nas operações. Inicia-se, assim, um violento e infreável processo de independência.
O término da guerra dá-se após mais de uma década de combate, através de um movimento revolucionário surgido no seio das Forças Armadas, culminando também no fim do regime conservador que esteve à frente de Portugal por quase cinqüenta anos. Assim, na madrugada de 25 de abril de 1974, militares de vários locais do país ocuparam, de forma pacífica, pontos estratégicos de Lisboa, ocorrendo, horas mais tarde, a rendição do então presidente Marcelo Caetano, sucessor de Domingos Oliveira Salazar no poder.
Com efeito, a Guerra Colonial deixou na memória lusitana um saldo extremamente negativo, qual seja, mais de um milhão de portugueses recrutados, cerca de dez mil mortos em combate, vinte e cinco mil feridos, além de uma experiência da guerra que se manifestará a partir de três aspectos, quase sempre interligados: o alcoolismo, o estado de saúde comprometido por Perturbação do Stress Pós-Traumático – PTSD, e, por fim, o rompimento da comunicabilidade, seja no plano coletivo seja no plano pessoal. Nas palavras de Teixeira,

...rara é a família portuguesa ─ salvo os ricos e os influentes do antigo regime e não poucas das mais conhecidas famílias da oposição ─ que não foi ferida peça Guerra Colonial. E se os custos humanos foram de grandes dimensões para um pequeno velho país de menos de 10 milhões de habitantes, as perdas materiais atingiram um nível próximo da ruptura econômica (TEIXEIRA, 1998, p.88).

LOBO ANTUNES E A GUERRA COLONIAL

António Lobo Antunes nasceu em 1º de setembro de 1942, na cidade de Lisboa. Proveniente de uma família da alta burguesia portuguesa, licenciou-se em Medicina pela Universidade de Lisboa, com especialização em Psiquiatria. Exerceu a profissão de psiquiatra, paralelamente à de escritor, no Hospital Miguel Bombarda, localizado na capital portuguesa, até meados da década de oitenta, dedicando-se a partir de então exclusivamente às atividades de escritor.
Durante a Guerra Colonial em Angola, Lobo Antunes atuou como clínico geral. Em síntese, sua carreira militar durou cerca de 03 anos: foi recrutado em 06 de Janeiro de 1970 a fim de cumprir o serviço militar, no posto de alferes miliciano, mais tarde promovido a tenente. Já em 06 de Janeiro de 1971, embarcou para Angola, permanecendo até março de 1973, perfazendo vinte e sete meses vivendo em um dos palcos da guerra na África portuguesa. Experiência que acabaria por marcar densa e profundamente toda sua obra literária.
Ao regressar da guerra, Lobo Antunes retomou seu trabalho como psiquiatra e deu início, em 1979, à atividade de escritor ao lançar a obra Memória de elefante, primeiro romance de uma trilogia no qual apresenta o narrador-personagem (um médico psiquiatra) que, após voltar da guerra, retoma seu trabalho como funcionário do hospital lisboeta Miguel Bombarda. No mesmo ano, Lobo Antunes ainda publica seu segundo romance, Os cus de Judas. Na obra, o narrador-personagem relata a uma interlocutora desconhecida sua experiência como soldado português na Guerra Colonial em Angola. Já no ano seguinte, em 1980, o escritor conclui a trilogia com a publicação de Conhecimento do inferno, onde igualmente nos deparamos com o médico que narra suas experiências de guerra em território angolano.
Após a publicação da trilogia, Lobo Antunes lançou mais vinte livros durante os anos de 1981 a 2008, entre romance, crônica, conto e poesia, além de publicar ensaios, artigos e crônicas em jornais e revistas de literatura, arte, etc. A temática da Guerra Colonial é uma constante na obra do escritor português, juntamente com outras questões que se referem ou se reportam a todo um processo de transformação vivido pelo povo português.

OS CUS DE JUDAS SOB O SIGNO DO TESTEMUNHO

No século XX, enquanto representação cultural e memorial de um período assinalado por catástrofes, a literatura não poderia deixar de expressar de algum modo essa situação histórica característica, recaindo, desta forma, em um terreno fértil para o surgimento do fenômeno literário típico da segunda metade do século, a literatura de testemunho – modalidade de literatura em grande parte escrita por sobreviventes de catástrofes, onde autor e fatos aparecem de modo fragmentado. Para ilustrar, podemos citar escritores como Primo Levi, Jorge Semprun, Paul Celan, entre outros.
Nessa esteira, o romance português contemporâneo passou a incorporar em sua temática a memória do trauma sob viés do testemunho dos sobreviventes da guerra, sobretudo, após o fim das guerras coloniais portuguesas e através da obra ficcional de escritores que estiveram na África durante o período de enfrentamento bélico entre africanos e portugueses. Entre eles, podemos citar Lídia Jorge, João de Melo, Jorge Martins Garcia e António Lobo Antunes. Este último, com uma vasta obra reconhecida e aclamada pela crítica que lhe propiciou uma série de premiações pelo mundo inteiro. A obra Os cus de Judas, em particular, ganha destaque entre os títulos da bibliografia ficcional antuniana que trata da sua experiência na Guerra Colonial.
Lobo Antunes renunciou ao estatuto do silêncio para testemunhar, pela via ficcional, a experiência-limite que viveu em Angola, utilizando-se de um narrador-personagem que, entre reminiscências puerícias e meditações acerca da condição em que se encontra, narra, de forma fragmentada, os anos de temor e angústia inumanos que carrega na memória. Uma recordação que ecoa intensamente dentro de si, de tal modo que é como se o narrador-personagem ainda estivesse presente naquele tempo-espaço rememorado. Nessa esteira, Fiuza (2007) afirma que, ao narrar a experiência, percebemos que a relação testemunhal funde-se na presença real do enunciador na cena, unindo, assim, corpo e voz:

...foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lucusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada...
...e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do silêncio indignado dos mortos... [...] A voz gorda do tenente, rebolando de muito longe repetia Pôr o selo na patroa... [...] ...os capitães vindos dos sargentos jogavam as damas na messes, o Ferreira cicatrizava o coto da perna que já não tinha...
...e eu continuo em Angola como há oito anos atrás, e despeço-me do soba-alfaiate junto à máquina de costuma pré-histórica, coberta agora de um espesso musgo de ferrugem...
Ainda estou lá de certo modo, sentado ao lado do condutor numa das ao lado da coluna, a pular pelas picadas de areia a caminho de Malanje. (ANTUNES, 2007, p. 36, 86, 119 e 122
)

Para Beatriz Sarlo, “poderíamos dizer que o passado se faz presente. [...] ...o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio” (SARLO, 2007, p.10). Mas a literatura de testemunho assenta um problema diante do ato de narrar a experiência do trauma. Seligmann-Silva afirma que “a narrativa testemunhal é marcada por um gap entre evento e discurso” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.31). Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falha: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir a experiência vivida com o verbal: “nos apercebemos de que não existe carne nos nossos gestos nem som nas palavras que dizemos...” (ANTUNES, 2007, p.59).
Para Freud (apud SELIGMANN-SILVA, 2007, p.33), a experiência traumática não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Nesse sentido, o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos. A linguagem, segundo Seligmann-Silva (2007), tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato de sua recepção. Daí Freud destaca a constante repetição, alucinatória, por parte do “traumatizado” da cena violenta: a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real. A incapacidade de simbolizá-la determina a repetição e a constante “posterioridade”, a volta à cena, ou seja, é o passado que se faz presente.
Assim, podemos pensar essa “repetição” do trauma como signo do constante regresso de Lobo Antunes ao palco da Guerra Colonial que, de fato, exigiu do autor o esforço vultoso que o levou a produzir a trilogia Memória de elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do Inferno, dedicada exclusivamente à memória de guerra. Além disso, como afirma Antunes: “Quem veio até aqui não consegue voltar o mesmo...” (ANTUNES, 2007, p.123). E não consegue voltar o mesmo tanto porque carrega consigo a carga de uma experiência-limite não digerida quanto pela constante busca em dar-lhe forma, já que o vivido transborda sua capacidade de articulação verbal, provocando um sentindo de inverossimilhança.
De tal modo, a literatura de testemunho: uma literatura que expõe o comportamento e as transformações (físicas e psíquicas) dos homens durante a guerra, carrega consigo a impressão da irrealidade dos fatos, pois “tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colônias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE...” (ANTUNES, 2007, p.193 e 194). Com esse pensamento, afirma o escritor italiano Primo Levi, autor de É isto um homem?, obra em que Levi narra os anos que passara em Auschwitz-Birkenau durante a II Guerra Mundial: “Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para esta ofensa, a aniquilação de um homem” (LEVI, 1988, p.24).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a pretensão de esgotar as possibilidades de análise e interpretação de Os cus de Judas, tratamos da obra antuniana no sentido de mostrar que o testemunho presente na literatura pode ser visto como um elemento que se manifesta com maior nitidez em certas produções ficcionais do que em outras – como no caso d’Os cus de Judas –, e nos permite, por conseguinte, pensar em uma nova abordagem do fato literário, na qual questionamos as possibilidades de representação da realidade, sobretudo, a partir da narração de experiências-limite.
O escritor português Lobo Antunes regressou da guerra e permitiu-se falar, dando vida e voz à ficção que testemunha a experiência da barbárie – a sujeição do homem ao inumano diante da presença do trauma na sociedade moderna. Nesse sentido, Seligmann-Silva afirma: “A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço” (SELIGMANN-SILVA, 2007, p.35). Em Os cus de Judas, o narrador-personagem depara-se com um cenário de guerra onde preponderam a agressividade, o medo e a angústia humanos. Desse cenário, ficará para sempre o fantasma de um passado que não passa: a vivência traumática demasiada para o testemunho ou para a transmissão.
No entanto, esse mesmo narrador-personagem busca – aprisionado a um passado que se afigura como “um almoço por digerir [que] nos chega em refluxos azedos à garganta” (ANTUNES, 2007, p.114) e diante do imperativo de narrá-lo –, dar significado (ou forma) a essa experiência vivida, a qual não pôde ser totalmente assimilada e que reside eternamente no presente. Destarte, afirma Seligmann-Silva: “O testemunho alimenta-se, como vimos, da necessidade de narrar e dos limites dessa narração...” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.40).

REFERÊNCIAS

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KEHL, Maria Rita. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL, Ivete & TILBURI, Márcia (Orgs.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004.
LEAL, Lara. O longo aprendizado da agonia: a epopéia lírica de Lobo Antunes. In: Literatura e violência: o lugar da memória traumática, Rio de Janeiro: Gândara, Instituto Camões, PUC-RIO, nº. 2, 2007, p.127 a 137.
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
MARCO, Valéria de. Questões sobre a literatura de testemunho. In: Língua e Literatura, n.º 25, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo: Humanitas, 1999, p.153 a 167.
OLIVEIRA, Raquel Trentin. A inversão do relato de guerra no romance português contemporâneo. In: Revista das Letras, n.º 67, Curitiba: Editora UFPR, set./dez. 2005, p.109 a 120.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Org.) História, memória e literatura – o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunhos da barbárie. In: Revista EntreLivros, nº 28, Ano 3, 2007, p. 32 a 35.
TEIXEIRA, Rui de Azevedo. A guerra colonial e o romance português. Agonia e catarse, Lisboa: Notícias, 1998.


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